Sunday, 20 March 2016

Pai...A imperdoável falha de não o seres

Deixámos de falar. Nem por causa dos miúdos mantemos contacto.
 Nos primeiros anos ainda tentámos simular tolerância, aceitação, uma pequenina réstia de amizade que se tivesse pendurado em nós como um pequeno aranhiço que se suspende de uma teia. Passado esse tempo assumimos que não nos suportamos. Que nos desprezamos mutuamente. Ele, porque nunca me perdoou tê-lo posto a milhas da minha vida, eu, porque nunca lhe perdoei ter sido tão mau em tudo. Tão…sensaborão. Tão vazio e ao mesmo tempo tão cheio de si mesmo, como o são os balões inchados de coisa nenhuma.
Nos primeiros meses aparecia, sob o pretexto de ver os filhos. Tentava beijar-me, roçar as mãos no meu peito e eu sentia nojo. Um arrepio de puro repúdio tomava conta do meu corpo. E ao mesmo tempo que me invadia a náusea sentia pena. Dele. Dos miúdos. Mas nunca lamentei o egoísmo que me fazia pensar apenas em mim. Era um direito meu. Ninguém mo podia tirar.
Hoje cruzamo-nos na rua e se possível nem nos cumprimentamos. Se o fazemos é um aceno que nos damos um ao outro, sempre com a pressa de nos perdermos de vista. Um “ Olá, tudo bem” assim mesmo sem ponto de interrogação. Na verdade o que fazemos é dizer olá para cumprirmos as regras da boa educação e de seguida afirmamos (não que interesse ao outro), que cada um de nós está bem e recomenda-se, obrigada. Um “Olá, tudo bem” que não espera nem exige resposta como todos os outros “olás” que dizemos a pessoas de quem não queremos realmente saber, mas que cumprimentamos por conveniência.
A vantagem que temos nesses encontros onde as palavras não se fazem necessárias, é que temos logo de seguida a liberdade para seguirmos em frente, nos nossos caminhos a solo, cada um na sua, sem nos olharmos, como de resto sempre fizemos.
Nunca nos olhámos.
Construímos uma vida em comum que não era bem em comum. Eram mais linhas paralelas que não se tocavam, (são assim as linhas paralelas), olhando em direcções opostas, nunca a mesma, nunca um para o outro.
Nunca me perguntei de quem foi a culpa. Não me interessa esmiuçar uma parte da vida que ficou irremediavelmente no passado. E se dou comigo a pensar nisto hoje, é porque me dou conta de que lhe perdoo quase tudo. Quase tudo. Que ele não tenha sabido ser meu amigo, meu marido ou meu amante. Perdoo. Não lhe perdoarei nunca que ele não saiba (nunca soube), ser pai.

Pecados

Esta manhã entrei na igreja. Já há muito que não entrava na casa de Deus. É frequente passar-lhe à porta, mas apesar de a encontrar aberta, não entro. Poderia de quando em vez, gritar “Ó da casa!” e esperar que o vulto anafado do Senhor se aproximasse arrastando os pés sobre o soalho lustroso onde se ajoelham as beatas zelosas, tementes à sua ira e envergonhadas dos seus pecados. Todavia, avanço. Às vezes até acelerando o passo, confesso, não vá o Criador espreitar pela fresta de uma janela, a da sacristia que costuma estar entreaberta, e chamar-me para dois dedos de conversa. “ Então rapariga, que tens feito?” Emudecia. A uma pergunta dessa natureza, não há nada a dizer. Tenho feito o que toda a gente faz. Peco. Peco por defeito e por feitio, por determinação e teimosia, por tudo e por nada. Peco. Ainda agora quando me benzi em frente do altar, olhei a figura de Cristo na cruz e pequei. “ Era um homem bonito este Jesus”. Pequei. Achei-o belo, mesmo assim abatido e de ar sofredor, o rosto atraente, de olhos doces, mas profundamente sedutores e pensei que se tivesse sido eu no lugar de Maria Madalena me teria apaixonado perdidamente por Ele. Em menos de nada ali estava eu a imaginá-los juntos, a Ele e à Madalena, fazendo amor num qualquer barco de pescador, no meio de tainhas saltitantes implorando para serem devolvidas ao mar da Galileia, no Monte das Oliveiras enquanto os apóstolos dormissem, ou até no interior do Sinédrio, mal as portas se fechassem e os rabinos voltassem a suas casas após os sermões. Jesus, como o pintam, era um homem bonito. É um facto. Madalena, suponho, também não seria nada de deitar fora. Nestes dois dedos de conversa com o Senhor Deus, eu teria que pedir-lhe perdão por mais este deslize. “ Como ousas atribuir ao meu filho uma conotação sexual?” Deus perguntaria, claro. Ou então não. Talvez Ele entrasse na minha mente, antes mesmo de eu lhe responder. Talvez nem fizesse a pergunta. Deus, de tão perspicaz que é, e conhecendo bem as suas criaturas em geral, e esta criatura que hoje lhe entrou pela casa dentro em particular, sabe muito bem que a razão de eu atribuir ao seu filho um sex appeal que me deporta para o plano dos blasfemos e sacrílegos, tem a ver com o facto de o achar incrivelmente parecido com o M quando ficava 1 mês sem desfazer a barba. Sabendo disso, perdoar-me-ia a intrepidez. Espero. Pelo sim pelo não, e antes que o escriba celestial some mais uma falta ao meu já extenso registo de episódios indesculpáveis, rezo um Pai Nosso e uma Avé Maria. Olho de esguelha para o Cristo, tento distrair-me com os vitrais, a imagem imaculada de Nossa Senhora, a caixa dourada das hóstias sobre o altar, mas é a santa barba do redentor que me traz outra vez a imagem do M, naqueles dias de inverno em que vestia grossas camisolas de lã e se recusava a cortar o extenso tufo de pêlos que lhe tapavam metade do rosto. Imediatamente pensei: “Tantas coisas que podias fazer comigo e só queres fazer-me falta.” Pequei de novo. Foi mais forte do que eu.

Filhos de um Deus Maior

Comprei o "Pai Nosso" da Clara Ferreira Alves. Ando a lê-lo com entusiasmo e devoção estranha. O meu fascínio pelo Médio Oriente ainda hoje é um mistério para mim. Islamismos à parte, construo do Irão uma visão romântica, bela. Fico feliz quando me dizem que me pareço com as mulheres iranianas, embora saiba que é mentira, sou 100% europeia. Ok…talvez como a minha mãe, eu guarde alguns traços árabes. Isso explicará a minha atracção por homens sarracenos? As peles morenas, tisnadas do sol, os olhos grandes, escuros e expressivos chamam-me à terra, logo a mim que sou tão céu. Sou toda céu. Uma lunática, por assim dizer. Custa-me aterrar por aqui. Há qualquer coisa na lei da gravidade que é anti- natura no meu corpo. Ao invés de me obrigar a ganhar raízes, impele-me a criar asas. E é por isso que não raramente voo para longe, atravesso as nuvens de Bagdade, flutuo sobre Ancara, meto a fundo até Istambul, parto o coração em Damasco, cruzo os papagaios de papel dos meninos de Cabul. Até que por fim em Teerão, descanso. Um descanso reparador, terno, como se braços protectores me acolhessem finalmente em casa. Há países que eu amo como se fossem meus. É também o caso da Índia. Amo a Índia. Amo-a com um amor antigo, indissolúvel, incompreensível. Se eu, em silêncio fechar os olhos e inspirar profundamente, sinto chegar-me às narinas os 1001 perfumes indianos. Dos mercados como o Chandni Chowk, em Délhi, chegam-me apimentados e doces, odores misturados a suores, incensos, especiarias, perfumes baratos, os charutos dos turistas ingleses, óleos queimados de viaturas que se atravessam, atropelam, chocam, seguem como se a vida fosse só ali um bocadinho mais à frente. O fedor do Ganges, lenha queimada, corpos queimados, animais de rua, masalas, semolinas, chapati… Consigo até ouvir os mantras, os mesmos que se entoam na orla do rio sagrado, de frente para o Kashi-Vishvanatha Mandir, o templo de Shiva. Uns fazem eco ao redor das piras e levam a Yama, kala ou qualquer outro Deus que dedica a eternidade aos mortos humanos, as suas imperfeitas almas. Outros elevam as suas vozes a Parvati, a Ganesh, a Shiva: “Sarva Mangala Mangalye Shive Sarvartha Sadhike Tryambake Gauri Narayani Namosture.” Repete-se 9 vezes para se ter sorte no amor. Casais felizes para sempre só os há, se matraqueiam afinadamente as palavras mágicas. E este é o fascínio que a índia exerce sobre mim. De Calcutá a Goa; do Ganjes ao Yamuna; dos arrozais ao Taj Mahal; das monções ao bafo quente que me beija o rosto, um beijo do diabo, húmido, peganhento; do crepitar do carvão nos fogareiros acesos em passeios tortos, ao restolhar dos saris que secam nas cordas, do silêncio no interior dos templos, ao desassossego dos meninos de rua, as mãos estendidas pedindo moedas, pedindo pão, pedindo água, pedindo colo…a Índia é deslumbrante.

Genesis

Ontem fui ver a minha mãe. É assim que tudo começa. 
Sou eu e a minha mãe. 
Ela num leito de dor e fluidos que lhe escorrem pela boca do corpo. Eu a contorcer-me num espaço exíguo, húmido, escuro como uma gruta cavernosa onde a luz do sol se faz longínqua. 
Ela a gemer e a cerrar os dentes, eu a abrir caminho até à luz, os meus ossos apertados e a carne magoada. Por fim, o alívio. 
A mãe desmaia caindo num repouso inconsciente enquanto eu berro cá fora aturdida pela claridade e pelo frio, pelos sons e pelas mãos que me tocam. Mãos que eu não conheço. A mãe também não me conhece. Continua no seu sono profundo e não quer saber de mim. Crescemos por fim, as duas muito juntas, ela cada vez mais mulher. Eu, cada vez menos criança. Ambas vinculadas a um pacto: Uma obrigação mútua de nos aceitarmos nas diferenças, suportarmos nos conflitos, de nos aprendermos na viagem que empreendemos, de nos amarmos em todos os momentos, mesmo naqueles em que o amor nos mingua, tolhendo-se no gelo que nos corta o coração. 

Ontem fui ver a minha mãe. Houve um tempo, há muitos anos, que eu a via como uma louca, sem brilho nem brio, desgastada pela vida, em constante desequilíbrio. Não me lembro de alguma vez a ter olhado como se olha um farol ou uma torre. Às vezes odiava-a silenciosamente. Outras amava-a mesmo assim. 

Quando depois da berraria por tudo e por coisa nenhuma, se sentava num canto a soluçar, dava-me pena. Mas os gestos, aqueles gestos que afagam, beijam e abraçam o outro como se o outro fosse uma extensão de nós mesmos eram gestos proibidos, despropositados, infantis demais para uma mulher adulta como a minha mãe. Restava-me então a comiseração mesclada com a incompreensão, às vezes a intolerância, outras o descaso. Via-a infeliz, consumida pelos rios de solidão que lhe sulcavam a vida. Ainda hoje a minha mãe é um desnorte. É-me por isso difícil ir ao seu encontro. 
No meio da sua tristeza infinda, prostra-se diante do seu muro particular de lamentações, o seu mundo interior revoltoso, desalumiado, emperdernido. Vejo-a assim como um produto inacabado. Uma boneca de porcelana que na linha de montagem saltou procedimentos de fabrico e saiu para o embalamento apenas com um olho, meio pulmão, um coração distorcido, uma mente defeituosa. 

Nunca me atrevi a perguntar-lhe se algum dia teve sonhos. Quais eram? Acredito sinceramente que nunca os teve ou se os teve, tê-los-á deixado morrer na penumbra de um cotidiano triste e enfadonho. Terão morrido ainda em estado embrionário, pequeninos, enfezados . 
Ao longo dos anos na soma de agruras e amarguras a minha mãe seguiu os passos dos seus sonhos e também ela mirrou. Hoje uma mulher pequenina, como o são todas as mulheres que silenciaram dentro de si os seus desejos, a mãe cortou definitivamente as asas que a custo a levaram de um dia ao outro. Não mais suportou o peso das pedras que pendiam das suas penas e a obrigavam a voos rasteiros. Ansiou libertar-se de tão limitadores pendentes e de um só golpe decepou-se. 

A mãe que nunca conheceu a vertigem de planar nas alturas, que nunca viveu as alegrias das perfeitas aterrissagens, fez jus à sua condição de mulher térrea e rastejante e hoje quando a encontro, lá está ela a escarafunchar as migalhas que a vida lhe deu, satisfeita por graças a elas, nunca ter sentido fome. Eu, que hoje também sou mãe,tenho medo de me tornar como ela.

Sou uma ostra...

Descobri que sou mais feliz quando estou infeliz. Que o sofrimento é pai e mãe da criatividade, que da dor nascem as musicas mais belas, os textos mais sumarentos, ricos e emotivos. Descobri que tenho um lado masoquista, que sinto prazer na dor,que me delicia a solidão e que brindo à sua chegada,copo de vinho numa mão, cigarro na outra, musica de Bach ao fundo a acompanhar espirais de fumo e a concorrer com o som das teclas. Nada me dá mais prazer do que escrever. Nem o sexo destrona a escrita...nem o amor, fazê-lo, fodê-lo... Gosto do orgasmo mental... e desenrolar as palavras, rasgar a alma e vomitar sentimentos...gritar pelas pontas dos dedos...Gosto da tristeza. Não de uma grande tristeza que me paralise e me transforme em estátua de sal, não da que traz desespero, nem pensamentos sombrios; nunca imaginei pulsos cortados, nem pés descalços sobre o parapeito de uma janela, nem o vento frio na plataforma de uma estação de comboios. Não da tristeza que traz só tédio,conformismo, desistencia. Mas gosto daquela que escava um buraco no meu corpo, em mim se aninha e descansa. Anda comigo durante algum tempo ...apenas o suficiente para ser fecunda.Depois de largada a semente deixa-me criar e tão inesperadamente como chega, vai-se embora. E se ela não voltar...se a sua ausencia me obrigar a ser feliz, ficarei infértil, terra árida e seca...campo que já deu trigo... em pousio... Sobre felicidade, não sei escrever uma única letra.

Natais

Lembro-me bem do caminho que fazíamos a pé para casa da Tia Júlia. 
Atravessávamos a estrada macadame, metíamos por um atalho térreo, lamacento no inverno e empoeirado no verão. A avó guiava-nos através dos trilhos, andava em passos pequeninos para nos acompanhar, deixava-nos descansar à sombra das oliveiras. Subíamos a encosta ladeada de figueiras, comíamos os figos quando maduros, apanhávamos nêsperas ainda verdes, tão azedas que nos deixavam a língua áspera como a de um gato. 
Cantarolávamos canções populares e seguíamos saltitantes até ao cruzamento de alcatrão. Dali ao casario era uma descida de poucos metros. De um lado e do outro, vinhas. Que barrigada de morangueira nos espreitava dos muros! 
Ao lado do curral da burra que me suportava nas longas caminhadas, um pirliteiro de ramos espinhosos. Exibia lindos cachos de pirlitos nacarados, qual romãs mal acabadas de nascer. Apanhava uns quantos até encher os bolsos depois de prometer à avó que não os enfiava no nariz. Todavia, mantida a promessa quanto aos pirlitos, no inverno vingava-me de todas as juras a contragosto. As veredas contíguas ao curral da burra, profícuas em frutos vermelhos, apaziguavam-me a gula com as amoras nos dias de suão, e em Dezembro, enquanto apanhávamos o musgo para o presépio, brindavam-me com o azevinho com que entupia as narinas. 
As bagas pequeninas, fazendo lembrar tomates anões, eram-me retiradas pacientemente pela mãe. Enquanto os primos esfuziantes abriam os presentes, eu pranteava com uma pinça enfiada no nariz. Não fossem os açoites mesmo antes da Missa do Galo, e as pústulas nas fossas nasais logo no dia a seguir, e os meus natais teriam sido perfeitos.


(Playful Heart)

Sinceramente acreditei que escrever ajudava. 
Pensei que se os meus dedos andassem o bastante nos sentidos contrários do teclado, se esqueceriam de como era saltitarem-te na pele. 
Acreditei que este cinismo da escrita, este mesmo que enfeita a verdade do que fomos, dissimulasse agora, a que somos. E, no entanto, ando para aqui sem ressalvas, a empoar-me as lembranças com palavras, como se elas fossem pózinhos de pirlimpimpim capazes de transformar numa qualquer magia o que quero mesmo dizer-te. 

Não é de hoje que me questiono se nós, humanos, no dia em que largámos as caudas de girinos, algúres em pantanais sulforosos e nos somámos a braços, pernas e espírito, não tendemos a confundir os repentes animais que nos levam à ardência do sexo, com os amores sublimes e divinos que, supostamente nos entrelaçam as almas. Tenho cá para mim (pelo menos depois que te foste) que andamos aqui ao engano, desde os dias primevos, e que, muito antes do fogo e da roda, já nós sabíamos fintar a natureza com a mesma mestria com que a convencemos de que o prazer que nos explode no corpo quando copulamos, não é um mero engodo para o acto mecânico na prepetuação da espécie. Ela (a natureza) deve ter acreditado nessa patranha que lhe contámos, porque, ainda hoje, homens e mulheres em todo o mundo se enrolam e esfregam e beijam e entram um dentro do outro, como se existisse em tais actos um objectivo admirável e profundo que lhes enobrece a condição. 

Suspeito agora, de que, também eu me deixei ludibriar por essa visão magnificente de uma boa foda, (digo) e talvez por isso me convenci de que te amava, enquanto ardia por dentro, às sextas à noite. Já não estou certa de sentir-me assim porque me cabias, porque me preenchias o espaço vazio entre as minhas pernas ou se na verdade te enlaçavas em mim nessa outra dimensão espiritual que nos transcende, e onde somos sempre luz. 

Seja qual for o tamanho do aleive em que me embalei, posso jurar que me habitaste o milímetro quadrado do coração, porque hoje ele doí como um sopro e rompe-se como um buraco negro que me suga a matéria de que sou feita. 
Não sei se (acaso eu me tivesse acautelado o bastante para não me deixar enganar por tangas ancestrais), teria querido de ti, não mais do que uma hora ou uma tarde, talvez um dia, não mais que isso. Seria por certo, essa, a forma de não gastar tantas palavras em orgias semânticas. Poderia até dizer-te que me satisfaço afinal com três: Sexo. Amor. Fim. Não necessariamente em simultâneo nem obrigatoriamente por esta ordem. 

Poderia até dizer-te que afinal nunca te amei, ou na pior das hipóteses que amei sim, mas que já não te amo mais. Mas isso seria tão estúpido quanto acreditar que depois que fomos girinos e nos largámos as caudas, que depois que nos somámos a braços, pernas e alma, desatámos a fintar a natureza, levando-a a crer que somos capazes de algo bem maior do que apenas nos saciarmos fisicamente como o fazem os restantes animais. É óbvio que somos mestres na mentira e que nos enganamos a nós mesmos com a frequência com que nos sentimos únicos e próximos de Deus, mas… acredita: a única coisa que fintamos desde os dias primevos é exactamente o Amor e é por ele que nos enrolamos, beijamos e copulamos. 

É verdade que a única fracção de vida em que o levamos a sério (ao Amor), é mesmo quando somos ainda crianças e corremos para onde sabemos estar o aconchego de um abraço protector. E é por isto que eu nunca percebi porque é que quando tudo nos parece um bom pretexto para brincar, nos é lançado o feitiço de sermos tão circunspectos no amor, e a maldição de, (quando já somos adultos), transformá-lo numa forma divertida de passar o tempo.
Vale-nos porém a certeza de que o amor não é para nós, uma brincadeira qualquer: Ele é pelo menos, a nossa brincadeira favorita.


Se eu fosse eu.

Li um texto da Clarice Lispector que começa mais ou menos assim. Se eu fosse eu. 
A frase tocou-me. Profundamente.

 Há muito que me pergunto quem seria eu, se fosse eu. 
Acho que cheguei à minha segunda fase dos porquês. A primeira, tive-a em criança. Nessa altura perguntava “ Porque é que o sol é quente, as formigas andam em carreirinhos, o cheiro da terra molhada é doce, o que são pecados, onde mora Deus, a mãe me diz não. Porque é que me dizes não, mãe? 
Hoje eu sei que a mãe me dizia não para que eu não fosse eu. Aprendi então a não ser eu. Sou o que faço, sou os meus filhos, os meus pais, o meu chefe, os meus colegas de trabalho. Sou os meus amigos e os meus inimigos. 
Mas…e se eu fosse eu? A vida começa todos os dias e todos os dias, mal o sol nascesse, faria caminhadas matinais à beira-mar. E nessa altura, saberia que cada grão de areia a afundar-se em baixo dos meus pés é uma estrela no céu: Um grão de areia acima da minha cabeça. E então eu teria noção da minha pequenez e finitude.
Viajaria mais. Dissiparia o medo de me perder nas estradas do mundo e tornar-me-ia numa andarilha.
Escreveria mais. Não perderia 1 segundo do meu tempo com o que não me faz feliz e dedicá-lo-ia apenas ao que me faz rir a alma. 
Arranjaria uma casinha de aldeia, daquelas térreas com um grande quintal e enchê-lo-ia de cães, gatos, pequenos ciprestes e trepadeiras nos muros. Forraria as paredes com livros e exporia sobre os móveis as conchas de todas as praias do mundo. 
Faria tatuagens no meu corpo. Andaria com um bindi no meio da testa. Descalça. Andaria mais vezes descalça. 
Veria sempre o pôr-do-sol. Porque em cada dia encontraria um novo encanto no poente.
Teria menos flores nas jarras e mais no jardim. 
Poria um aquário no lugar da televisão. Ele lembrar-me-ia da profundidade da vida e livrar-me-ia do superficial.
Pelo menos uma vez experimentaria a sensação única de planar num parapente. E então eu saberia que as aves são de todos os seres da Terra, os preferidos do Criador. Porque Ele lhes deu a elas aquilo que os homens mais ambicionam: Liberdade. 
Escolheria uma praia privada e faria nudismo. E então eu saberia que a roupa que me veste é apenas um acessório. 
Daria mais do meu tempo aos velhos e às crianças. Para então compreender que atravesso agora a ponte entre eles. 
Apaixonar-me-ia mais. Por tudo o que valesse o meu amor. Também por mim, que tantas vezes me desmereço.
Seria menos polida. Gritaria a uns “Vai-te foder”, com a mesma satisfação com que digo a outros “Gosto tanto de ti”. Sem me sentir culpada. Acobardada. Sem medo de ferir o outro, de represálias, de perder um amigo, um namorado, um emprego. 
O medo, esse fantasma manipulador que me paralisa, seria então um pequeno espectro. Uma sombra passageira a esbater-se na firmeza da minha coragem. 
“Vai-te Foder!” Di-lo-ia com a minha dicção perfeita, alto e bom som a quem merecesse ouvi-lo. Preocupar-me-ia menos com as carências e confiaria mais no futuro. 
Confiaria mais em mim. Saberia então que Ser e Ter são coisas muito diferentes e se a primeira é o que a vida me dá, a segunda é o que ela me tira.


Felicidade tola

As manhãs dos fins- de-semana costumam ser boas. Muito boas. Somos os do costume, é certo, mas em dias com tempo, libertos da escravatura do relógio, seguimos pelo paredão concentrados no ritmo, inspirando aromas de algas e mares. Desfrutamos dos raios de sol que nos secam a pele, escutamos a música do ipod - cantigas secretas que ninguém imagina que seleccionamos - soletramos baixinho e com o pensamento escrevemos frases longas; ininterruptas, sem pontuação. Fazemos genuínas promessas de vida e resolvemos ser felizes e sorrir sempre até ao fim dos nossos dias. E é por fim, na consciência dos curtos instantes de felicidade tola, que tomamos conhecimento de que a vida é demasiado breve.