Devia parar de escrever só para não me ler. Temo que as palavras se me escapem por entre os dedos, fujam a sete pés ou afluam à superfície; que se esgueirem por entre as brechas da minha desatenção e resolvam dizer-me o que quero esquecer. Por isso, por estes dias, tranco-as a sete chaves e alimento-as a pão e água nas minhas masmorras frias e escuras. Quero-as fracas, quebradiças e resignadas à sua sorte, para que não se amotinem nos ressaltos das minhas entranhas nem deslassem as amarras que tanto trabalho me deram a compor e onde me contenho a esforço. Devia parar de escrever para não me ler. Calar-me as letras: evitar as perífrases nas quais tendo a estender-me, contornar os sinónimos e repetir antónimos falsificados mas profícuos na minha análise de ti. É nos contrários que me assentam bem as letras e é neles que me revejo e faço de conta que se dispensam as correcções. Eu odeio-te, eu renuncio-te… eu minto-me, eu minto-me, eu minto-me…
Devia repelir os adjectivos, sujeitos e complementos, como pedintes que espreitam à socapa pelo óculo da porta. Devia desactivar-me temporariamente. Receio que tantas letras me persigam e matreiras, me fintem, me levem ao engano e me encantem, sereias, estendendo-me a mão, o ramo de oliveira, o cachimbo da paz, a outra face. Não quero que se me insinuem, nem que se dispam e rodopiem no varão da minha imaginação demente. Tenho medo do que possa encontrar de mim, nelas. Tenho medo de te encontrar em mim, nelas.