Contos



Em Nome do Dever






I. 

S. não era mau moço. Medianamente constituído, fora agraciado pela Providência com uma determinação férrea, quase fanática, que tanto o agarrara à vida como aproximara da morte. Com aquilo, decerto, nunca tinha sonhado. Tinha vinte e seis anos, abandonara todos e sangrava copiosamente de um braço. A terra a que o dever o conduzira era-lhe em tudo estranha: ali não tinha familiares ou afectos; o conhecimento que a custo conquistara do idioma local era recente e, convém admiti-lo, medíocre. Ao longe, entre a penumbra, o fogo e o fedor a carne queimada, contemplava Alepo. Para os lados do aeroporto, os camaradas dos Grad pulverizavam as casas com chamas. O ruído era arrasador. 

S. estava na Síria. Fizera-o por imperativo de consciência, em submissão à ideia de dever que, desaparecida entre ocidentais, continua a domar espíritos naquele mundo que americanos e europeus dizem bárbaro. A Damasco rumara como homem pequeno alumiado por causas grandes, soldado político numa era em que surge como sacrílego o mero acto de acreditar. Acreditar? Acreditar, sim, contra tudo e todos, no direito daquele povo mártir a uma vida de tranquilidade; acreditar, sim, corajosamente, radicalmente, bizarramente, na obrigação de resistência a essa maré de ódio e destruição que outros acarinharam, alimentaram e lançaram sobre o orbe. Era um cruzado num tempo sem Deus, um patriota de todas as pátrias agredidas, um excêntrico e um homem caridoso, bravo, louco e bom. 



A dor enraivecia-se e enraivecia-o. Escrevia sem parar, controlando a custo o membro fustigado. Lá fora, rosnava furiosa a orquestra da guerra. Quando uma gota de suor violava o manuscrito, asneirava, suspirava e logo retomava aquele labor frenético. Queria deixar aos seus algo, uma explicação rápida, mas sentida e libertadora, caso se desse o pior e acabasse abatido pela horda. Como conhecia o adversário, decidira-se a evitar a vida breve e dolorosa que a captura lhe traria, colando ao peito duas granadas de mão. Rebentá-las-ia mal os facínoras se aproximassem do seu corpo ensanguentado. Escrevia mais, mais ainda, numa prosa carregada de segurança, segurança que a perspiração intensa lhe refutava. Talvez tivesse sido má ideia toda aquela aventura. Se caísse naquela tarde, o que teria comprado com o sangue que vertia e tinha feito verter? Tentou recuperar a calma. Levou à boca um garrafão com chá frio – para evitar maleitas, fervia sempre a sua água - e devorou as gotas resistentes. Não eram muitas. Depois, lançou-se novamente ao guardanapo pútrido em que escrevinhava e tentou encontrar calma, e força, e vontade para concluir a carta à mãe.

II. 

O triste personagem que na Síria parecia disposto a encontrar a morte era português. Nascera numa terriola da província, um buraco sem luz ou arte. Fora, quase sempre, figura débil, franzina, mais dado às empresas do espírito que aos esforços do corpo. Isso alterara-se com os anos, e não sem custo, mercê de uma fortaleza da vontade que reconhecia como sua principal virtude. Fora sempre, crucialmente, um radical. Era-o por ser um espírito devoto, por animá-lo um apego religioso a tudo o que amava, por considerar-se singularmente capaz de deixar uma cicatriz, uma marca sua, na face da História. 

Essa ambição conduzira-o ao Levante. Como o inimigo, o sicário prenhe de pêlo e ódio que lá enfrentaria, S. respondia da sua forma a um chamamento superior. Chegara a Damasco em 2013, ano de todas as calamidades, de todas as desilusões, quando parecia imparável o fim da Síria secular. Hospedara-se no centro da cidade, a um ou dois quilómetros do palácio presidencial. Ainda assim, mesmo no coração do poder, conheceu o olho do furacão: de tal forma se deteriorara a situação que a capital, famosa pela vivacidade das suas noites, se dividia entre o ruído das festas e o rugir dos morteiros. Nesse instante, não conseguiu evitar dividir-se, questionar-se, ruir perante as dúvidas. Era realmente ali que queria estar? Que estranha loucura de Verão o roubara à paz da Europa – bom, da Europa ainda segura, do canto teimosamente tranquilo que é Portugal – para atirá-lo para aquele inferno? Enlouquecera? Não, sabia-o nas estranhas. Encontrara para a vida um propósito maior que si próprio. 

Aquela noite, que recordava com um pormenor que não guardava de nenhuma outra, fez-lhe bem. Recuperara a determinação. Na manhã que se seguiu, rumou à sede do ministério da defesa, prédio de aspecto sólido, conquanto marcadamente delapidado pelos combates. Ali se dera, meses antes, o atentado que por pouco não vitimara o presidente, mas que tivera sucesso em ferir o ministro da defesa e o temido irmão de Bashar al Assad, Maher. Indicaram-lhe - lembrava-se distintamente desses primeiros dias - que esperasse uma audiência num salão repleto de bandeiras e retratos. Quando por fim o anunciaram, teve lugar o fatal interrogatório. A custo, explicou os motivos do seu interesse, a limpeza das suas intenções e, até, a valor potencial da sua presença para a propaganda do regime. Não deixaria de convir às autoridades do Estado um europeu de raiz, um cristão “ocidental”, envolvido no esforço de guerra. O questionador, um major-general de aspecto severo, ouvira tudo com atenção. Após os primeiros minutos de conversa, juntaram-se-lhes duas corpulentas figuras de gravata negra. Eram, evidentemente, agentes da polícia secreta, a Mukhabarat. Sem surpresa, perguntar-se-iam se este estranho homem de tez pálida seria um espião, um serviçal da coligação que combatia o seu país. S. vinha preparado para as inevitáveis desconfianças e submeteu-se a moroso, irritante e exaustivo interrogatório. Quando tudo cessou, mais de quatro horas passadas, os seus interlocutores davam claro sinal de acatamento. Passara o pior e S., reforçado pela vitória, perguntou-lhes onde, ou como, poderia dar o seu sangue, a sua juventude, se necessário a sua vida, em defesa de uma terra que ainda ontem pisara pela primeira vez. Enviá-lo-iam para a província de Homs, cuja capital se encontrava, então, cercada pelo exército e servia de ninho à “Revolução”. 

S., muito atento, acompanhara tudo desde o momento inaugural, desde o primeiro tiro de fuzil. Desprezava – não, detestava, odiava com a paixão de um romântico – a vil canalha que levara a anarquia e a destruição àquela pátria pacífica, àquele bastião de diversidade na ordem. A Síria importava-lhe, pois renovara-o, libertara-o da mentira, fizera-o um homem novo. Com ela, S. apercebera-se da inelutável incompatibilidade entre o Ocidente – que antes defendera, mas que agora via como um tumor em permanente e belicosa expansão – e a liberdade dos povos, incluindo do seu. Descobrira, ainda, não terem os homens do poder percebido ou aprendido nada com os crimes que haviam cometido os seus antecessores. Fugia para a trincheira em busca de redenção, procurando desfazer entre a metralha os crimes de que era cúmplice a sua bandeira natal. 



III. 

Damasco, a capital dourada dos omíadas, antigo baluarte de Saladino, era quase invisível entre a devastação. Aceite no exército como voluntário estrangeiro – estatuto incomum que partilharia, todavia, com bom número de afegãos xiitas, continuadores árabes da obra de Aflaq e Nasser, iraquianos e iranianos –, S. admirava por uma derradeira vez a extraordinária tenacidade dos damascenos. Eis um povo submetido a todos os horrores, à permanente opressão da bala, ao ruído tonitruante da artilharia, à desprezível – porque desleal e rasteira – bravura do bombista solitário, e, ainda assim, hirto entre os escombros. A população habituara-se a uma vida de tensão. Batera os nervos, esbatera o medo, encontrara vida na morte. No início, disse-lhe um vendedor no souq, a população procuraria abrigo nos momentos de maior violência. Agora, reconciliada com a realidade do conflito, poucos se permitem distrair pelas passagens rasantes da aviação, pelo casario em combustão ou pelo desespero dos órfãos. Solidificara-se uma tranquilidade cruel. Foi nas imediações da capital síria, a curta distância das instituições centrais do Estado, que lhe foi dada a conhecer a curiosa sensualidade das armas. Não tendo nunca padecido de fantasias marciais, nunca antes tivera particular interesse por estas ferramentas de extermínio. Seria agora, na prossecução do dever num país estranho ao seu, que realizaria o baptismo de fogo com que sonham, e a que brincam, os moços. Dias terríveis, mas abundantemente férteis, para quem tarde se habituara aos agachamentos, às flexões, à urgência da pontaria e aos perigos do combate. Ao fim de uma semana – o país, pressionado pela ductilidade da frente, não tinha como proporcionar aos que por si combatiam maior preparação – cessava o período de adestramento. 

De uma base próxima, amiúde bombardeada pela força aérea israelita, S. tomou o caminho da província a que fora destinado. Um local, nativo da capital, avisou-o num inglês impoluto dos perigos da viagem. Explicou-lhe que a auto-estrada que conectava as duas cidades, troço moderníssimo que atestava o progresso económico do decénio anterior, fora encerrada devido à infiltração terrorista. O caminho para Homs far-se-ia por lá quando possível e, sempre que necessário, através de trilhos secundários, obscuros, mas mantidos em segurança pelas autoridades. Partiram à noite, quando a escuridão e o cansaço conspiram para silenciar os guerrilheiros. A força aérea síria, armada com vetustas aeronaves de fabrico soviético, respondia com fogo seu ao dos islamistas. 

Arribaram na frente após exaustiva viagem. Chegado da Europa, ignorante destas brutalidades, o português espantara-se ao ver, pela primeira vez, o voo ameaçador dos helicópteros, a artilharia em acção, o rigor das patrulhas e das incontáveis inspecções do exército e milícias aliadas. Nessa noite, a sua primeira no centro da mais abrasiva das crises mundiais, viu, também, pela primeira vez, o fim de um homem. Não o conhecera antes. Via-o agora, em toda a sua mórbida excitação, em confuso remoinho de cor, de fedor, de pavor. Era um iraniano, ao que parecia tenente-coronel da Guarda Revolucionária, corpo de elite enviado para ali por Teerão. Sentiu-se indisposto. O choque fê-lo levar a mão à boca, procurando controlar o vómito e os nervos. Um sírio, olhando-o, desprezou-o com os olhos e comentou algo com um camarada. S. percebeu, disso tinha a certeza, a referência ácida ao “Bortukali”, o português. Evidentemente, consideravam-no carne inútil e sem serventia. Com toda a probabilidade, reconheceu S. no silêncio dos seus pensamentos, teriam razão. 



IV. 
Estrondo ensurdecedor, súbito, e o mundo inteiro parece estremecer de medo. São os extraordinários, tão belos e tão horríveis, Grad. Importados às centenas, netos do célebre – porque fatal – órgão de Estaline, estas máquinas são o mais poderoso braço e mais sólido escudo do exército. Observando-os com surpresa nos minutos iniciais, habituando-se depois ao seu fogo devastador, S. cedo aprende a admirá-los e a temê-los. Já desembarcados, encontravam-se a meros quilómetros de uma povoação, outrora desconhecida, a que os combates tinham dado nova importância. De ténue maioria cristã, a terriola que sitiavam encontrava-se, desde há seis meses, sob o controlo dos “rebeldes”, designação esotérica por que se referem os ocidentais à coligação de violadores, cortadores de cabeças, saqueadores e maltrapilhos fanatizados que se aposta em fazer da Síria um emirado. 

Sucederam-se, em imparável cadência, as chuvas de projécteis ao vilarejo. De quando em vez, tentando obter vantagem dos avanços da artilharia motorizada e da aviação, pequenos grupos aventuravam-se entre o labirinto de ruínas. Bem-sucedidos em algumas ocasiões, desbaratados noutras tantas, os sírios dispuseram-se rapidamente a contar com S. O português, ambientando-se, decifrando o idioma local, dando provas de si e revelando-se um atirador competente, celeremente se assenhoreou da confiança dos seus anfitriões. Mostrou-se, também, um táctico de talento. Percebia, virtude preciosa entre capitães de homens, a arte de comandar, a calma que é fonte de coragem, os truques do pastoreio. Encontrou o sucesso na dura confiança de que insuflava os seus. Matou em si o fraco europeu que fora para erguer, sobre os destroços, um oficial.

O novo S. fazia-se a cada ofensiva, a cada contra-ataque debelado, a cada camarada caído, a cada grito de alegria e de dor. Na trincheira, onde outros quedavam estropiados e mortos, ele nascia. A preparação para a investida final, adiada até à exaustão para que se poupassem homens e material e melhor amolecessem as defesas inimigas, dar-se-ia, por decisão do comando sírio, ao fim de sete longas semanas de assédio. S., já promovido, já medalhado, encabeçaria um dos grupos de choque. A honra era grande, inédita, sem repetição anterior ou contemporânea: a este forasteiro, trazido ali por uma vontade fanática, competiria dar amparo aos autóctones e carregar-lhes – a bandeira era deles e só deles, pois S. era ainda, no próprio coração e nos olhos dos outros um estrangeiro – a insígnia nacional.

Na madrugada que antecedeu a grande carga, como que denunciando as suas intenções, começou mais leve, fazendo-se depois crescentemente sonoro, o bombardeamento do exército. Ao toque de clarim, feito inútil pela severidade com que se expressavam as armas, S. apresentou-se, juntou em posição propícia os que lhe estavam confiados e, surgindo o sinal, esbracejou freneticamente ordem de ataque. A pequena distância, soprado por outro oficial, escutou-se um apito e, armados de munição e fome de descanso, lançaram-se centenas sobre os abrigos terroristas. S., correndo, procurando concentrar-se, ia admirando em seu redor o terrível circo da morte. Esgar sorrateiro e saltavam a seu lado, em indefinida poça de sangue, vísceras e ossos quebrados, três ou quatro dos pobres com que ainda há momentos trocara cigarros e gargalhadas. Atirou-se ao chão, cortando a lama com a face. No rádio, pediam-lhe instruções. Tentou reagir, propôs-se pensar. Em voz rouca, esmorecida pelos rebentamentos, indicou a uma das equipas uma posição fortificada pelo inimigo. Segundos depois, explodia a habitação. 


Desimpedido o caminho, avançaram mais um pouco. Abandonaram cautelosamente os abrigos, buscando garantia de protecção. Todos rezavam, uns pedindo a intercessão do Profeta, outros implorando-a a Cristo, pela acalmia. Ela exibia-se distante. Num acesso de clareza, lembrou-se de que combate suicidas. Retirando do bolso o rádio, agora poeirento e de ar danificado, pediu a todos que atarraxassem os punhais ao cano dos fuzis. Algo lhe polui o olho. Ao reabri-lo, tombou-lhe perto novo camarada. De novo, todos se atiraram ao chão. S. inspirou sofregamente, como que antecipando um fim que não queria para já. 

Era, berram-lhe ao rádio e a viva voz, um atirador furtivo. Os terroristas possuem-nos em largos números, mercê da ampla experiência que combate que vão adquirindo e do magnífico armamento que lhes é fornecido por americanos, europeus e sauditas. Milagrosamente, desencanta algures o fiel rádio. O comando, que contacta, explica-se, lamenta-se, tudo para acabar por reconhecer-lhe nada poder fazer contra uma ameaça que lhe era invisível. S. grita-lhes, por desejar fazer-se ouvir e por querer libertar-se de um ódio que se lhe formava nas entranhas, que recorram á força aérea. Vinte minutos e fortíssimos raides aéreos esmagam os últimos focos de resistência às forças libertadoras. Abre-se o caminho ao exército. 

Com as cautelas de sempre, o contingente vence o medo passo a passo, suspiro a suspiro, antes ainda de bater os adversários. Levantam-se, procuram o insidioso inimigo, pedem a atenção do Alto. Ao fundo da rua, uma casa esventrada dá sinais de vida. Toda a cor lhe fora arrancada das paredes pela braveza dos combates; do edifício, outrora espaçoso e elegante, restava apenas sombra pálida e sem graça. Mas, muito como aquela nação exangue, hirta e forte apesar de todas as provas, de todos os suplícios, de todos os martírios, aquelas paredes velhas insistiam em resistir. S., curioso e faminto, acompanhado de quinze dos seus, aproximou-se do betão esburacado. Procurava um naco de pão e, se a sorte lhe sorrisse, um maldito maço de tabaco. A entrada, caricatamente encerrada, encontrava-se coberta por quatro pedaços de madeira colados a corda e pregos. Lá dentro, por entre o remoinho de devastação que acometera aquela terra, ouvia-se música. Alguém tocava flauta. O tom doce, solene, até alegre, contrastava rudemente com aquela rua caiada a pólvora e sangue. S., suando das mãos, sentiu-se encolher. 

Suspirou e, recuperando a pose marcial, decidiu-se a entrar. Aos seus, deu sinal para que se preparassem para o que a sorte pudesse reservar-lhes. As tábuas que serviam de porta à casa caíram ao primeiro encontrão e, já no interior, S. achou-se confrontado com um rapaz de caçadeira em riste. Da outra sala, onde secara a música, gritou-lhe uma voz:

- Ja’afar, eles já se foram. Esse é do governo, deixa-o entrar.
O moço, confuso, hesitou por uns segundos. Depois, ao detectar a insígnia do exército que S. ostentava no ombro direito, baixou os braços e apontou a arma ao coração da terra. Chamou a mãe e o pai, que surgiram do nada com um menino em braços. A senhora, que chorava, ofereceu-lhe um fio. O patriarca, indivíduo de aspecto sólido, praguejava. Aproximando-se dos recém-chegados, dirigiu-se a S. e envolveu-o nos seus braços, amaldiçoando-o por chegar tão tarde e bendizendo-o por ter chegado.

V.




Ali, onde de novo se respirava a paz e os corações afugentavam o ódio, ondeava invicta a bandeira rubra, branca e negra, estandarte altivo dos mártires por cair. Ali, onde o retrato presidencial adorna as paredes e sossega os espíritos dos oprimidos, os cânticos extravasam as igrejas, a Cruz abraça o Crescente e os homens, irmanados pelo patriotismo, recitam em uníssono o Credo e a Shahada. Nas ruas, mulheres de face coberta saúdam as que trajam à ocidental, e, quando o pior se dá e o esforço de defesa lhes devora os filhos, choram-nos em conjunto, vivendo a mesma dor, escutando a mesma canção nacional e vergando-se ante a mesma bandeira. A Síria de todos os sírios, eis a pátria de que voltava a ser síntese a aldeia libertada. 

S. retomava agora, após tantas provações, tantas provocações, tantos encontros com a dúvida, ao conforto das grandes certezas. Reaprendia os seus motivos, reconquistava a consciência dos altos princípios que o haviam subtraído a Portugal e direccionado àquele mundo em chamas. S. rumara à guerra na esperança de construir a paz, e construir a paz era, em escala simultaneamente pequeníssima e enorme, o que fizera ao longo destes meses. A árvore a que tantos haviam ofertado o seu sangue florescia finalmente, e retribuía-o com a mais alta das vitórias. Dirigiu-se à igreja local, templo maronita, logo católico, que os “moderados” imoderadamente haviam tentado quebrar. O portão, esculpido de magnífico cedro libanês, manifestava sem vergonha o extremo cansaço. Trespassara-o toda a diabólica maquinaria da guerra moderna. Rangia, rugia, permitia-se perturbar ao mais leve toque do vento. S. ultrapassou-o com pena e sem dificuldade. Uma investida sua, leve e de quem respeita o adversário moribundo, e submeteu-se a sentinela. S. penetrou depois, em misto de cautela e solenidade, o templo libertado. No interior vazio, tudo dava prova de pavorosa ruína. De Saladino, glória dos conquistadores árabes de antanho, se diz ter protegido de raivas e saques todas as igrejas cristãs da Jerusalém tomada pelos muçulmanos aos latinos. Aqui, por certo, não haviam seguido o seu exemplo os que, arrogantemente e sem motivo, se proclamam continuadores da obra do grande general. 

Deus continuava, teimosamente, presente entre aquelas pedras. S. adivinhava-O entre os finos raios de luz que invadiam, insistentes e intrépidos, a nave destroçada. Mas já nada O exaltava, e pouco oferecia da Sua grandeza justo testemunho. S., cansadíssimo, deixou-se seduzir por um dos bancos remanescentes. Ofuscava-o aquele feixe de luz que, contra todas as violências, esmagando fogos e desesperos, gritava exaltadamente a vitória do Cristo. Christus vincit! Christus regnat! Christus imperat! Não era sobre o Profeta o Seu triunfo, contudo. Aquele dia radiante era verdadeiramente luz, e luz contra as mentiras com que uns poucos envenenam os olhos do mundo. Para os semeadores da discórdia entre nações, é uma guerra de civilizações, de povos, de fés a batalha que se trava na Síria. Ora, porque partilhara, então, S. o seu sangue com o de filhos de Cristo e devotos do Santo Profeta? Porque haviam católicos e ortodoxos, homens da Suna e fiéis de Ali, árabes e persas, contribuído tão energicamente para a salvação daquela aldeia, do seu templo e das suas famílias? Porque, ora, a espada que ali dera ao Terror a resposta merecida era a da própria Civilização, e o seu inimigo não era civilização concorrente, mas a barbárie. 

Como às maravilhas da sinfonia se segue o aplauso de almas saciadas, à artilharia se faria substituir, neste lugar ignoto, o martelo, a enxada, a beleza da escavadora em movimento frenético e fecundo. Lá fora, do Mediterrâneo à fronteira iraquiana, milhares saltavam ainda da trincheira, carregavam ainda para a terra-de-ninguém, choravam ainda, tremiam ainda, expiravam ainda. Aqui não, pois aqui os homens haviam assassinado a guerra com os instrumentos com que a guerra assassina os homens. O canhão silenciara o canhão. Regressara, para júbilo supremo de um povo que o destino – o destino não, a maldade, a inveja, os planos dos ambiciosos – deixara faminto e estropiado, a paz. E a paz trazia consigo a esperança de reconstrução, de retorno da normalidade. S., agente de lícita e necessária destruição, seria, por fim, semente de progresso. Na Síria, habituada há demasiados anos às agruras do conflito, a autoridade pública desdobra-se para ouvir, acolher, alimentar e enterrar todos. Em tempo de tão grande exigência, com a população mobilizada a um pináculo de prontidão, com duzentos mil homens em armas no exército e outra centena de milhar em milícias mantenedoras da ordem, tornaram-se as forças armadas prestadoras dos serviços essenciais e súmula de todos os ministérios. O soldado bate-se no campo da honra; quando o não faz ou para isso se prepara, repara edifícios arruinados, atenta nos pobres, nos esquálidos e nos doentes, distribui suprimentos, alegra infâncias, rasga estradas, ilumina vilas e cidades, reanima indústrias. Tudo faz, tudo dele se espera. Como a Prússia de Frederico, indigna e caricaturalmente lida por Voltaire, também a nova Síria é um exército com Estado e já não, como fora antes da tempestade, um Estado com exército. 

E o progresso, como um amanhecer feliz, foi chegando, primeiro a pouco, depois acelerando-se. Regressou a água. Depois, a custo e com o racionamento inevitável, reapareceu a electricidade. Aprontou-se, para evitar a repetição do desastre, a defesa militar. Pelas ruas daquela terra esventrada, as mulheres foram limpando vidros e balas usadas, enquanto os homens, sob condução dos soldados, reconstruíam fachadas e removiam as carcaças de máquinas e inimigos justiçados. S. foi coordenando, agilizando, misturando o esforço físico com a liderança intelectual. Coisa linda e quente, esta de uma povoação que se faz renascer. Uma semana de trabalhos e a igreja que S. encontrara para lá se encontrar, implacavelmente carcomida pela pólvora, erguia-se da cinza e fazia-se, como no passado, coroar de uma cruz dourada. Ao lado, na mesquita, o Muezzin chamava novamente a populaça à constante adoração de Deus e Alá, o Misericordioso, o Compassivo, acolhia-os, carinhoso, de volta ao santuário. 



VI. 

Nas crianças a que devolvia a meninice, nas mulheres a que entregava a segurança, nos velhos a que comprava a tranquilidade com a própria juventude, S. achou, brevemente, a dignidade e a paz. No labor de reconstrução que não cessava jamais, na fecundação do campo deixado estéril, na caridade absoluta em que se cruza a pá e o suor com o sangue e a espada, na vida que se vive ante a inevitabilidade do fim, percebeu-se, concluiu-se, sossegou o espírito. S., que existira antes de ali chegar e continuaria existindo após divorciar-se daquele local, só ali viveu verdadeiramente. 

Sabia, porque lhe não se seria lícito esperar outra coisa, ser finita a sua presença naquele oásis. A sua estadia, de si estranhamente longa, devera-se à necessidade de defesa das áreas recém-libertadas. Muito depauperado, perseguido por uma sinistra coligação internacional, o exército aceitara a fatalidade de uma guerra longa, preferindo a protecção integral das regiões sob controlo governamental ao dispêndio irresponsável, em operações ofensivas, de homens e meios. Agora, porém, outros ventos se levantavam. S. permaneceu durante cerca de um ano na aldeia, dividido na atenção – mas uno na devoção com que se entregava a todas as tarefas – entre os deveres militares e o empreendimento de reabilitação daquele montão de ruínas. E os destroços, regados pelo trabalho, transformaram-se, alindaram-se, converteram-se com rapidez surpreendente numa comunidade de novo viva, de novo airosa, de novo digna dos seus filhos. 

Naquele ano que se consumira, os acontecimentos multiplicavam-se para confundir o observador menos atento. No seguimento de uma série de desaires bélicos, o governo sírio, deixado inquieto pela dimensão da penetração inimiga, pedira apoio à Rússia, sua amiga, que lho fornecera. Outros seis meses, estes negros e sem cor para S. e felizes para o país a que se dedicara, se passaram. O soldado, que agora fizera nome e cujos feitos haviam passado a agitar a imaginação dos homens, era ainda O Português, e O Português era objecto de admiração para amigos e de temor para rivais. Tivera até, em episódio que lhe interessara, que o enobrecera mas que não infundira em si vaidade alguma, recebido no peito uma condecoração do próprio presidente. Quem o teria imaginado, dois anos antes, frente a homem tão vilipendiado, agraciado por ele com honrarias de metal? 

Fora dirigido, e lá passara todo o tempo que se seguira à sua extracção da aldeola, para Alepo. Segunda cidade do país, ferida desde 2012 por violentíssimos combates, Alepo dançava há muito, evitando sempre entregar-se por completo, entre o governo e os que se lhe opunham. A chegada dos russos aos Levante muito fizera para ajudá-la a decidir-se quanto a que lado desposar. Animados pelos potentes meios aéreos do aliado eslavo, os sírios haviam progredido, nunca sem terríveis sacrifícios, em todos os sectores da urbe. S. tomara parte em todas as operações, comandando, pensando, acompanhando, povoando os corredores do Juízo com hordas de almas a julgar. A custo, e por vezes com custas que ele próprio pagou, o Exército foi-se impondo, timidamente primeiro, depois forte e visivelmente, até deixar sob cerco todas os bairros rebeldes da cidade. 

S. comandava ainda, sem contar os entretanto tocados pelo martírio, o mesmo grupo de homens que trouxera de Homs. De Homs trouxera também, e mantinha-o sempre consigo, o amuleto, bonita cruz oriental, com que a senhora o presenteara. Eram uma companhia pequena, enfraquecida pela mortandade e reduzida a 130 homens. Hoje, véspera da mãe de todas as batalhas, analisou demoradamente, interrompido de quando em vez pelos rebentamentos, o que fora fazer àquele país. Encontrava-se satisfeito, mas medrava nele a saudade de casa. Talvez pudesse, após tantas exigências e tantas provas de valor, regressar a Portugal por uma ou duas semanas. Seria merecido. Preocupava-o apenas a confusão, a comoção que causaria a imprensa com a notícia de uma visita. Questionava-se, conspirava consigo soluções. Seria viável vir incógnito ou dariam por ele? Debate estéril. Como na sua primeira campanha, voltava a ressoar o detestável apito, Nesta guerra, o apito é violentamente odiado, e é-o por todos, pais e filhos, maridos e namorados, saberem ser ele infalível presságio de morte. Quando antecipa a carga, o apito adivinha, com raríssimas excepções, o passamento de um amigo. Mas essa era a oferenda insubstituível, o holocausto que Marte exigia para a segurança de casas, famílias e haveres. Todos o pagavam por amor à terra e, quando este esmorecia, faziam-no com duro sentido de realidade. O que distinguia de outras a oblação vindoura, o que fortalecia a vontade dos homens, o que hoje os estimulava e impelia, era a promessa de significância, de impacto, que esta oferecia. Um esforço derradeiro, um último corte, nova marcha pelo vácuo e as doçuras da paz voltariam, saudadas por tubas e tambores, a Alepo. 

Do céu, como divindades furiosas, aeronaves russas e sírias envolvem em invólucros de chama os facínoras sitiados. Grita-se. No horizonte, desenha-se uma escola, agora arruinada pela peleja fera, onde esvoaça o pavilhão escuro dos islamistas. Alguns leves tiroteios, uma sequência de investidas aéreas e S., sentindo-se abonado pela sorte, ordena o ataque geral. Tudo vai bem. Nas planuras dos seus sonhos, confundindo a matéria com a sede de descanso, imagina a parada, a bandeira erguida ao alto, a população reunida para saudar os heróis vitoriosos. A escola, brutalmente seviciada pelos enfrentamentos, deixou-se capturar. As janelas que um dia tivera eram memória distante. Toda a tinta, todos os adornos, tudo o que humaniza o betão lhe fora arrancado. Este edifício, como tanto de Alepo, não poderia ser alvo. Sete homens se haviam deixado matar na conquista de um inútil monte de cimento. 

Outra vez o apito. É uma tragédia. Um segundo e regressam, com ódio, agitando-se e bramindo, os sons da guerra. Era um forte, eficaz porque inesperado, contra-ataque adversário. O inimigo era fortíssimo, bravíssimo, quase imbatível na determinação por que se deixava animar. Passam-se uns minutos de incerteza, de clamor, de posições que se perdem e se recapturam para logo se perderem novamente. O objecto dos terroristas, o seu propósito, é encerrar ali a companhia e S., cercá-los e supliciá-los a todos. Engendram-se, para serem repelidos uma e outra vez, os esforços de reabertura da rua que os levaria a posição segura. Do outro lado, a menos de um quilómetro, os camaradas que os ouviam tentavam o mesmo. É empresa difícil, pois encontram-se bem armados, treinados e municiados os que se lhes opõem. A uns metros, têm um contingente da Frente da Vitória, reencarnação da desaparecida Frente Al Nusra e, logo, filha da Al Qaeda. 

Cai a noite, mas não a calma. O fogo, de tão intenso, parece refutar a hora. Como as metrópoles ocidentais que S. desprezava, fulgentes de luz quando o sol se esconde, a chama e o som mantêm, enquanto a matam, viva Alepo. S. deitou-se, sacou do bolso uma vela usada, uma caneta e um guardanapo. Silencioso, olhou o céu e impôs-se ao papel virgem. Aquele exercício era-lhe importante, pois limpava-lhe a alma e recordava-o do motivo nobre que o convencera a oferecer-se a um povo que não o seu. Justificava-se. Era um crente, um fanático como os que o cercavam, destrinçável deles só – e aí residia tudo – no objecto da sua devoção. Seria, isso era-lhe ponto assente, ou um louco, ou o mais são dos indivíduos.

O firmamento esbranquiça-se, levanta-se um estrondo. Aturdido, S, ergue-se por amor à própria vida. Tropeça em algo: é uma perna jovem que a explosão arrancara ao dono. Lembra-se do papelinho, a carta que queria fazer chegar à mãe, volta atrás e, circundando o membro arrancado, coloca-a no bolso. É importante preservá-la, pois tudo vai mal. Aproxima-se, por entre uma espessa parede de fumo, de gente da companhia. Um, visivelmente mais lúcido que S., explica ter a escola sido atingida por um carro bomba. Colapsara o bloco central, que a S. parecera o mais seguro e onde instalara o grosso dos homens. Se tivessem caído aqueles, mortos ou soterrados, toda a esperança de salvação se converteria em perigosa ilusão. 

O rádio deixara de funcionar. Certeiramente atingido, o aparelho esvaíra-se em ruídos primeiro desconexos, depois hesitantes e absurdos, até capitular. S. não o seguiria para a tumba. Ou antes, segui-lo-ia orgulhosamente, fatalisticamente, sem amor-próprio ou devoção pela vida, mas cobrando avultado preço por cada litro do seu sangue. Frustrado, dedicou ao objecto uns segundos de repulsa e, lançando-o para longe, desembaraçou-se daquele velho conhecido, agora um peso morto. Apercebia-se, com uma resignação que lhe crescia a cada movimento do ponteiro, que tudo lhe falhava, que todos o atraiçoavam, que se aproximava o fim. Ruído potente fê-lo estremecer. Seguiu-se um bafo escaldante, mistura de fogo e fragmentos mortais, que lhe estuprou a face jovem, a farda, o cabelo. O fio que a velha aldeã lhe oferecera, lambido pelas chamas, permitia-se também o luxo da rendição Mais uma deserção. “Morteiros, morteiros!”, escutava-se, entre gritos de dor, lá de fora. S. percebia tudo, sabia tudo, observava tudo, mas não reagira até ser tocado por aquela voz desconhecida. Tentava proteger-se da fumaça com um braço, mas o braço não lhe chegava. Olhando-se, explorando-se com o membro ainda funcional, deu-se conta da perda do outro. Considerou os sentimentos da mãe ao vê-lo assim desfeito e estendeu pragas a si e ao mundo. Colocou a mão no bolso. A carta desaparecera-lhe. À sua volta, surgira uma selva luxuriante de fogo e desespero. Sabe-se lá como, corria, perturbava o entulho, revirava a carne dos caídos como se possuidor da força, da energia, do entusiasmo de mil homens. Despendia o esforço derradeiro, a última gota de sangue, o segundo em que tudo culminaria em busca da carta para a mãe. Não perseguia a preservação própria, que comprometida e religiosamente desprezava; exigia a vida depois da vida, um triunfo final contra o silêncio, a vitória da memória sobre o tempo e do Homem ante a História. De todos, era frente à mãe que mais queria explicar-se. Não desejava ir-se sem glória e pedra – ou papel, mesmo que tão perecível - com que prová-la, pois isso seria roubar-se à mãe sem oferecer-lhe nada com que pagar-se-lhe a ela, sua progenitora e lícita proprietária. Novo rebentamento. Tenta fazer-se ouvir, mas mais não consegue que tossir asperamente. Dirige-se a um camarada moribundo, rapaz novo – não teria ainda perfeito os dezoito, mas que se apresentara ao serviço em recto cumprimento dos seus deveres – que se exprime histericamente, agitado, horrorizado porque eleito pelo Barqueiro. O moço não o sabe, mas, atingido no ventre, exala sangue e entranhas pelo pavimento. S., gelidamente, ignora a tragédia. Pensa apenas, sabedor de que tudo se aproxima do ocaso, na carta. Inquire o moribundo, mas também este miserável se deixa ir. São todos, sem excepção palpável, uns imprestáveis. 

Principiava, agora sem apelo, a esgotar-se a energia da companhia. Com ela, capitulava similarmente a esperança e a fome de vida naquela que fora, de todas as unidades do exército, a mais esperançosa, a mais brava, a mais faminta de honra na morte ou glória na vitória. Aquele agrupamento desfizera-se – fora desfeito – pela coligação sinistra da metralha e do rancor. Restavam agora, exaustos, esfaimados, na fronteira entre a nudez e a decência, sete resistentes. Fora-se, para restar apenas uma combatividade selvagem, toda a panache militar. Lá de fora, o silêncio impôs-se, subitamente, à confusa orquestra da guerra, cortando com um instante de paz o ímpeto da refrega. Iluminada pela luz da manhã, que por fim chegara, uma bandeira branca coroava uma pequena delegação do inimigo. 

Tratava-se, percebeu-o imediatamente S., de um convite à capitulação. Mas ele não capitularia jamais. A mãe, que não lhe leria nunca a missiva perdida, saberia compreendê-lo. Que momento grave e doce, este, em que ao soldado são oferecidos o martírio e a honra. S. não se permitiria ludibriar pelo adversário, inimigo brutal que o violentaria, oprimiria e decapitaria frente às objectivas. Nem a mãe o merecia, nem a sua dignidade o permitiria. Exalaria o último suspiro como cruzado num tempo sem mistério e patriota de todas as pátrias agredidas, fazendo sua a ética do aristocrata. Tomou ao peito dois estandartes, o seu e o da terra por que se entregaria, e bradou “Viva a morte!”. E morreu bem, sorrindo, pois fizera o seu dever. 

(Conto escrito pelo filhote, Rafael Pinto Borges)





FIM





A Teia




O que aconteceu na infância não fica na infância. Segue-me. Corre atrás de mim e apanha-me sempre que paro no caminho. Uns segundos. São só uns segundos de paragem. Para ver o meu rosto. As linhas do meu rosto. Não foi sempre assim. Antes a pele era lisa e não sulcava como um rio seco, quase sempre seco. A minha pele está seca. Antes era lisa e suave como a seda e eu construía-me. Com o quê? Com o que é que me construí? “ Tu, não prestas para nada.” 

Olho para um ponto escuro. Olho-o. Flutua no ar no meio do nada. Nunca te sentiste assim? Uma bola feita de negrume a contrastar com a luz do luar, ou com a luz dos candeeiros da rua?

Havia um banco. Mesmo em frente da casa. Eu sentava-me lá a pensar na minha pequena vida. Era tão pouco tempo ainda. Tinha uma boneca que se chamava Nicole e um cão perdigueiro que me ensinava a gentileza dos animais. Os olhos dele brilhavam como berlindes debaixo do sol do meio-dia. Se eu chorava ele chorava. Ensinou-me a solidariedade dos animais. A empatia dos animais. Na ponta do banco, à espera do primeiro grito da mãe que me chamava para entrar, talvez para uma nova reprimenda, os pés quase em pontas, “ se ela chamar levanta-te. Levanta-te e vai logo”… Se não chamava, eu ficava. Ficava sentada na ponta do banco. O cão perdigueiro a lamber-me as mãos e eu a sorrir-lhe cúmplice, sentada na ponta do banco. Agora sabia o que procurar, e onde procurar. Lá encontrava, todos os dias, sem excepção nem grande esforço, aquele ponto negro na face da escuridão. Sabia bem o que era. Sobre isso, estaria mesma disposta a arriscar o que quer que fosse. Até podia arriscar a vida. Não me importava de arriscar a vida. “ Tu, não prestas para nada.”

Apesar da possível poesia ou sublimidade da constatação, a verdade era simples. Aquele ponto escuro a flutuar no nada, como uma nave espacial, era uma memória qualquer que me vinha. A origem. Nunca te perguntaste qual é a tua origem?

A minha é uma espécie de aranha. Aquele ponto escuro é apenas a aranha no centro da minha vida, no meio da minha teia. Sabias que as teias são invisíveis quando as enxergas de longe? A teia é a nossa mais eficiente arma e armadura. Nela nos balouçamos, quando é o caso da vida nos soprar ventos. Vacilamos, não é? São os ventos. Por vezes detemo-nos imóveis a tentar adivinhar a aproximação das presas. (As tais oportunidades que nos aparecem e precisam da nossa máxima atenção para darmos por elas. Para as aproveitarmos.) Às vezes também nos detemos para nos protegermos dos predadores. De certa maneira, és um predador. Sempre foste. Defendi-me fazendo silêncio. Às vezes o medo paralisa-me. Outras vezes, faz-me andar sobre a minha teia cautelosamente. É preciso evitar nós desnecessários. Às vezes também é preciso dormir sobre a teia. Talvez meditar. Enredo-mo nela como ela se enreda em mim, num emaranhado de fios e enleios. Nisso, a aranha é de longe, mais bem-sucedida que eu. A sua rede é de segurança, de máxima segurança, enquanto que a minha é um labirinto. Um enleio confuso. Tantos nós e confusão. “ Tu, não prestas para nada.” Gostava de tirar isto a limpo. Porquê eu? Que fiz eu para não prestar para nada? Apenas nós e confusão. A aranha depende apenas de si própria. Pode perder uma presa, ou várias, passar fome durante dias, ver a sua teia destruída, - algum homem. Mais ninguém destrói a não ser o homem. Algum homem que diz à aranha: “ Tu, não prestas para nada”. Apenas uma besta como o homem. Só o homem diz a outro : “ Tu, não prestas para nada”. Diz-lhe quando nasce. Quando cresce. Quando tem 4 ou 5 anos, quanto tem 7 ou 8. Diz-lho na infância e o que acontece na infância nunca fica na infância. Persegue-nos. Corre atrás de nós e apanha-nos assim que paramos no caminho. É só uma curta paragem para descansar e…pimba! Já está. “Tu, não prestas para nada”. Foste apanhada. Tinha parado apenas para ver o meu rosto. As alterações no meu rosto. O meu rosto sulcado por linhas finas que antes não estavam lá. “ Tu, não prestas para nada”. Apanhou-me. Nem vento nem chuva seriam alguma vez inimigos à altura do meu belíssimo, intrincado e resistente macramé. Mas tu não és o vento nem a chuva. Se o fosses, no segundo seguinte eu determinaria, sem rancores ou lamentos sempre tão inférteis, recomeçar tudo de novo. Não és. E por ti, foi-me impossível recomeçar de novo. Fi-lo vezes sem conta, à pála da destruição causada por outros inimigos. Sem lamentos nem rancores recomecei tudo de novo. Só não o fiz, quando foi a tua habena sobre o meu corpo. E tu? Quantas vezes, sem lamentos nem rancores, recomeçaste tudo de novo? Com igual fervor, com equivalente fé e resiliência. 

Se fosses chuva ou vento, de agulhas de croché em punho, eu lá rendilharia o meu mundo e, num ápice, voltaria a instalar-me. E pararia. Pararia para olhar o meu rosto, para confirmar a simetria do meu rosto, e os sulcos na minha pele, às vezes rios, às vezes deserto inóspito. Sem medo. “Tu não prestas para nada”. As tuas palavras seriam apenas miragens no deserto. 

Neste pedaço de noite entre os ramos da árvore da vida, alargo ao máximo a minha área de acção, o meu território de caça. Porquê eu? Porque é que eu não presto para nada?

Não sei muito bem porquê, muito menos explicar a razão do ímpeto tão a despropósito, mas tu, o homem que me observa e secretamente inveja a minha autonomia, vê-me também assim, um insecto. “Tu, não prestas para nada” é mais do que uma frase. Mais do que um emaranhado de palavras. Uma teia de palavras. Uma teia perigosa. Fiquei presa nela. Fiquei presa nas palavras. “ Tu, não prestas para nada” é também o teu pé veloz sobre o meu corpo. Espezinhas-me. Eu tinha 4 ou 5 anos. Talvez 7 ou 8. Depois,9, 10….Por aí afora. O que acontece na infância nunca fica na infância. 

Disposto a ridicularizar-me, a assassinar-me, levantas-te sem hesitações de dúvida, agarras no cinto que trazes preso às calças e sacode-lo, às cegas. Sou surpreendida pelo som seco do baque, resultante da batida certeira do couro ágil contra o meu corpo. Sou surpreendida pelo som seco das palavras que fizeram eco e chegam aqui ao outro lado da vida, tantos anos depois. A outra margem. Foi como se tivesse atravessado um rio. O rio no meu rosto. 

O som audível que me leva a questionar sobre as possibilidades. “ Tu, não prestas para nada”. Serei eu uma aranha bem maior e mais robusta do que imaginei? Não obstante, poderei ainda tornar-me um corpo flutuante apenas visível para olhos treinados a ver aranhas no escuro? Tu não és hábil o suficiente para ver aranhas no escuro, pois tu não sabes nada sobre aranhas, apenas o que foste ouvindo nas conversas de café. Surpreende-te agora que a minha morte seja audível, sonora e arrepiante. A sério? Porquê a surpresa? Não era o que sempre dizias? “Tu, não prestas para nada”. Mas não foste sempre tu que… sempre…Foi um vaticínio. Tinhas razão? Logo tu, que queres ter sempre razão e não admites que alguém te mostre que estás errado….Muito menos eu. Eu nunca pude mostrar-te que estavas errado.

Não sei se podia ter impedido que me acertasses. Com as palavras. Muito mais que com o cinto que libertaste das calças. A tua arma mortal foram sempre as palavras. Se tivesses usado uma pistola e com ela tivesses disparado uma bala certeira sobre a minha cabeça, não me terias mais morta. A bala teria esvaído o meu corpo do sopro da vida, mas a minha alma continuaria intacta. As palavras não. As palavras matam o que está dentro. Matam a essência. Matam a alma. Hoje o meu corpo está vivo, mas sou um corpo sem alma.

Imagino que se não me tivesses acertado, o som teria sido apenas o da ponta do cinto a roçar um qualquer ramo em que não tinhas reparado. Esta segunda possibilidade não te convenceria. “ Tu, não prestas para nada”. O teu desejo entendia que o som assim verbalizado teria que ser forçosamente outro, mais sussurrante, mais esfarripado e nunca aquela batida seca. Ainda não acreditas que o embate de dois corpos sólidos em colisão me marcou para sempre? A tua voz ainda ecoa na minha cabeça. Uma nano-versão do estampido de um carro, por exemplo, de encontro ao corpo de um peão. Eu era o peão. O arrependimento, ou algo parecido, foi concomitante. Não querias verdadeiramente – nisso queres muito acreditar – matar-me. Mas se não o tivesse mesmo querido, porque embandeiraste então e bramiste com tamanha pontaria, as tuas palavras soltas? Eu poderia ter escapado. 

Procuras à luz da tua consciência e procuras com um olho tão clínico quanto a tua miopia to permite, vestígios da minha morte. Nada descobres. Nada vês. Eu não te digo que morri. A tua consciência está incólume, lisa, limpa. Sentes um certo alívio. Olhas vaga e indeterminadamente em teu redor. A fauna do costume. Gatos que se esquivam por detrás dos muros tão pardos como a noite, alguns morcegos quase imperceptíveis, um último beijo de dois namorados e o brilho intermitente dos pirilampos. Lembras-te de como eu gostava dos pirilampos? Lembras-te das noites de verão, os santos populares, as alcachofras a gemer nas fogueiras? Os estalidos do fogo e as faúlhas a trepar o céu em direcção às estrelas? Eu nunca consegui fazer o jogo das varas até ao ponto em que elas rasam o chão. “ Tu, não prestas para nada”. Nem nunca aprendi a andar de bicicleta. “ Tu, não prestas para nada”. 

Cansado de manter as palavras presas ao céu-da-boca, não raro as colocavas na ponta da língua, encostava-las aos lábios e sibilavas entre dentes, qualquer coisa inaudível para os demais. Mas eu ouvia. Ainda ouço. Às vezes as palavras escapam-te pelos olhos. Eu aprendi a ler os teus olhos. “ Tu, não prestas para nada”. 

Matuto obsessivamente na minha morte. O presumível assassínio da aranha. No fim de contas, ela é uma inadvertida e abstracta companheira da minha solidão. O meu outro eu. O ponto escuro. Hoje é quase uma sombra que se arrasta atrás de mim. Fiel vizinha. Uma dor crónica que como qualquer outra dor, por razões distintas elegi para as minhas deambulações filosóficas. 

O baque seco e inequívoco do meu decesso é afinal um som que estranhas e que eu entranho. Se tivesses esmurrado o ar, quase ao calhas, seria igualmente possível que os teus pés repetissem com rigores geométricos as minhas passadas? Imagina que percorro exactamente o mesmo caminho. Exactamente o mesmo caminho que fiz num qualquer dia da minha infância. Dou os mesmos passos. Faço o mesmo percurso. Venho da escola. O sol ainda vai alto e eu sei que a hora do jantar ainda tarda. Dá para um jogo do elástico. Talvez dois. Uma corrida pela praceta que entretanto se encheu de miúdos. Alguns dão pontapés numa bola. Outros atiram pedras aos ninhos das andorinhas. Paro por ali. As aves pequeninas, nuas e frágeis, ainda soltam pios mudos entre a porcelana fina dos ovos partidos. Coloco nas palmas das minhas mãos todas as que posso.

Já sei que morrerão em pouco tempo, tal como morreram outras que levei antes. Mesmo assim não desisto. Corro para casa, com os pássaros bebés enrolados nas mangas da blusa. 

Mal entro na cozinha pouso-as cuidadosamente sobre a mesa. Logo a seguir entras tu. Bêbado. Estavas quase sempre bêbado. Agarras nas aves minúsculas e atira-las violentamente contra a parede. “Tu, não prestas para nada”. O teu grito faz-me estremecer. Faço xixi. Pelas pernas abaixo. O medo impele-me para fugir mas impede-me de o fazer. Só queria salvá-las. Se ao menos uma vivesse… Seria matematicamente possível, ainda que pareça improvável, que voltasses a esmurrar os meus ouvidos com as mesmas palavras? Se ao menos uma vivesse… Dou-me agora conta do quanto procurei a tua aprovação. 

Eventualmente, eu poderei repisar algumas passadas. Mas tu não mudaste nada. Repetirias até à exaustão cada palavra que me adentrou como uma flecha em chamas. Deus ou o Diabo assim o determinaram, até por razões de tédio. Não há nada mais entediante que a constância. Tudo sempre tão igual. Talvez não valha a pena ocupar-me desperdiçando tempo num tão ridículo puzzle de passadas, mas sei agora quão maquiavélica é uma infância amarga. O que acontece na infância não fica na infância. Tu não sabes, mas foi na infância que desafiei os rigores matemáticos, geométricos e espaciais. Encontrei-me com Deus. Às escondidas. Quase tudo o que fiz na infância, fi-lo às escondidas. É por isso que ainda hoje não me conheces. Passados todos estes anos e não me conheces. Às vezes reclamo por que não me respeitas, mas vendo bem…como podes respeitar-me se não me conheces? O que sabes de mim? Vá, diz lá! Desafio-te a que me digas agora algo tão simples como…como o nome da minha cor favorita. Que música gostava eu de ouvir aos 15 anos? Quem eram os meus amigos aos 17? Não estranho o teu silêncio. Não sabes nada de mim. Na verdade, quase nada porque sabes afinal que eu não presto para nada.

Li muito sem que tu soubesses. Escrevi muito sem que tu soubesses. Chorei muito e tu sabias. Tinha os meus anjos que me visitavam sempre que tu não estavas. Eles só entravam se tu não estavas. Esperavam ouvir o som rouco do motor do teu carro. O fumo que se evadia do escape subia até ao céu e indicava-lhes que tinhas arrancado. Podiam finalmente descer ao meu inferno. Suspeito que também eles tinham medo de ti. Nunca lhes perguntei. Nas tuas costas ensinavam-me a ver o brilho na escuridão. Pontos de luz na penumbra, formas no nevoeiro. Ensinavam-me a ver a alma das coisas. Das coisas que eu não podia tocar mas podia sentir e até das coisas que eu podia sentir mas não podia tocar. Ensinavam-me a ver a minha própria alma. Às vezes também a tua. E o ponto escuro. Aquele ponto escuro que flutuava no meio do negrume. Quando é que isso acontecia? Era à noite? Não. Não era. Uma vez eu estava no estendal da mãe a apanhar a roupa e vi o ponto escuro. Fechei os olhos e lá estava ele escondido atrás das minhas pálpebras. O ponto escuro. A aranha. A origem. O meu outro eu. Então era isso. Estava ali em busca da luz. Entretive-me sem pressas, a brincar com as rotinas. A luz havia de vir. Do meio das rotinas. Saías, trabalhavas, bebias, ralhavas, humilhavas, batias, comias, dormias, saías, trabalhavas, bebias, ralhavas, humilhavas, batias, comias, dormias, saías… Com quantas pessoas seria possível passar a papel químico uma rotina por mais repetitiva que fosse? És um homem previsível. “Tu, não prestas para nada”.

Hoje, coloco os meus pés em lugares que pisei noutras viagens. Se não tivesses esmurrado o ar com as palavras que acabaram por me matar eu teria descoberto outros lugares onde levar os meus pés. 

Tenho dias em que o aperto no peito é mais forte. Tenho dias em que sufoco num crescendo e logo que transponho a fronteira da minha infância, sinto algo que só uma aranha é capaz de sentir. Um atropelamento de todos os sentidos que acaba por ecoar-me na carne, nos ossos, nos tendões tensos, nas unhas que se cravam na minha pele, embrulhadas que estão nos meus punhos cerrados. Ouço os meus próprios dentes rangerem. Tudo em mim se retesa, numa espécie de ensaio geral de um sorriso para lá de forçado que tenho. Na verdade não tenho, não é um imperativo.

Olhar-te nos olhos e sorrir-te é a minha grande actuação. Finjo encantos que cá não estão. Balanço-me como quem dança, mas sem a graciosidade necessária ou antes, como se dançasse ao compasso de uma música diferente da que está a tocar na minha cabeça. O tema já não é o mesmo. Hoje tenho uma música diferente. 

Não sei se a ti te pesa a culpa. A culpa de sentir que começaste a desamar-me muito antes de que eu pudesse sentir o teu amor. Sinto que às vezes me olhas com princípios de ternura e pena. Nos teus olhos, o brilho que nunca rivalizou com o brilho do teu amor. 

O mundo não é perfeito, mas tudo se tornou demasiado pesado nas relações humanas desde que o último concílio da humanidade decretou o amor como único garante da vida. Colocando-se no lugar dos deuses, os homens tentam, desta forma, equilibrar os excessos, nivelar as injustiças, ou apenas jogar uma última cartada na sobrevivência da espécie. Se apenas os não amados morressem, a dor seria, em teoria, suprimida e a selecção natural da espécie asseguraria, de uma só vez, a eliminação dos pouco empáticos, dos psicopatas, dos seres tóxicos e agressivos, dos malfeitores, dos mais velhos antes dos mais novos. Tanta ingenuidade! O que impede alguém de amar um crápula? Ou um idiota? Ou de desprezar o próprio filho?

Será um pai capaz de não amar uma filha que cometa o maior dos pecados? E de odiá-la mesmo que ela seja a mais amorosa das filhas? Serão todos os assassinos odiados por todos? Ninguém ama por decreto. E o sangue não é razão para amar. Alguns são capazes de simular sentimentos semelhantes ao amor e capazes de ludibriar o mais apurado dos sentidos. Outros amam com a desmesura dos mais sensíveis. Amam e pronto. Mas tu começaste a desamar-me muito antes de que eu pudesse sentir o teu amor. 

Ninguém está preparado para que a vida de outrem dependa da carga de afecto que nele se investe. Ninguém? Nem mesmo uma mãe, um pai? O que pode esperar a mulher que carrega uma vida durante nove meses? O que pode ela esperar quando abre as pernas para lhe mostrar a luz do dia? E um pai? O que pode esperar um pai a partir do preciso momento em que sabe que o mundo contará com uma extensão de si mesmo? Como manter um amor nivelado? Com a bolha sempre na horizontal. Estabilizada. O amor ente pais e filhos (desconfio) é em alguns casos, uma verdadeira profissão. É-o no nosso caso. Ninguém quer morrer. Ninguém quer matar. Claro que, no final de demasiados anos de vida, alguns desapontamentos e ainda as novas doenças para as quais não há cura, acabam aquilo que o desamor não consegue. Morre-se de qualquer maneira. Mas só o desamor é capaz de matar alguém antes que tenha vivido. 

As dúvidas não são muitas. Mas as perguntas, cresceram à medida que foram passando os dias sobre a minha morte. “ Tu não prestas para nada”. Deixas-me tirar isto a limpo? Porquê? Porquê eu? Porque é que eu não presto para nada? O que é para ti prestar para alguma coisa? Ter casado com um desses trolhas bêbados como tu, que se lançam ao balcão da taberna a pedir cervejas pela madrugada dentro? Ou ter uma carreira brilhante, um apartamento em Paris e um carro de alta cilindrada, habilmente conduzido por um chofer? Lamento desiludir-te, mas esta é a minha realidade e sim, podia ter sido diferente e não, não foi apenas por tua culpa que não foi diferente. Eu também tinha que ter sabido lidar com as lâminas que me apontaste ao pescoço. As lâminas que ainda na infância me começaram a cortar os sonhos. Transformei-me num naco de espaço desocupado. Vazio de afecto. E por isso, só descansaste quando me viste num féretro a caminho da morada final. 

Se pudesses voltar atrás, àqueles instantes em que bradavas a minha inutilidade e insignificância, farias com que o tempo abrandasse no compasso inverso ao que o teu coração troteava? Não foi apenas uma vez que ouvi o teu coração e deixei de me iludir com estímulos que abafassem o som do teu desamor. Estavas preocupantemente a desamar-me, cada dia um pouco mais. Àquela velocidade, nos meus tenros 7 anos, eu teria a mais, quando muito, uns seis meses de vida. Mas não sei porquê, apesar da minha morte, o meu corpo prevaleceu. Resistiu. Cresceu e arranjou forma de continuar a mover-se sobre a terra. 

Se ao menos a aranha ainda estivesse viva… Como é que o simples e pouco sólido corpo de uma aranha podia ter originado um estampido tão audível? Um eco que se ouve desta margem da vida onde estou agora? Por certo, as palavras que me berravas insistentemente ficaram de alguma maneira, suspensas na teia. E quando lhe dá o vento, elas vibram como as cordas de uma guitarra. 

Envelhecemos. Já reparaste como envelhecemos? Os rios que sulcam a pele do meu rosto começaram antes a sulcar a pele do teu rosto. Já não és o belo homem que posa sorridente para a fotografia com o cigarro entre dedos e eu já não sou a rapariguinha que faz xixi pelas pernas abaixo mal entras em casa. Hoje, tu és o moribundo que esconde um corpo decrépito por baixo dos lençóis de linho, imaculados. E eu sou a tua única companhia. Limpo-te a baba e dou-te água a beber por palhinhas que cabem no único espaço que consegues dispor entre os teus lábios. Ouço-te grunhir, um som rouco e distorcido que te foge da garganta. Não sei garantir se manifestas a tua dor ou a tua decepção. Serão ainda as mesmas palavras? “Tu não prestas para nada.” 

Sorrio. Mesmo que te vire as costas logo que posso, para não tornar mais penoso e ridículo o meu sorriso plástico. O mais barato que encontro. Um sorriso barato para uma emoção cara. Mas ouço a tua voz. Cerro os olhos para não me irritar com a tua voz. Pergunto-te o que disseste. Tornas a repetir:

“-Está por aqui um bicharoco. Parece uma aranha.”

Num ápice, atiras com a palma da mão sobre a nuca calva. Ouve-se o baque da estalada. “ Tu, não prestas para nada.”

Matas a aranha. Na tua mão há agora o resto de uma vida. Um corpo estardalhado é tudo o que sobra de uma vida expedita. Uma vida que sabia fazer teias. Tu não sabes fazer teias. Antes soubesses, mas és apenas um homem. Um pequeno homem. Os pequenos homens não são capazes de grandes coisas. Não são capazes de fazer teias, porque não há teia que não seja feita com amor e os pequenos homens não são capazes de amar. 

Sou afinal órfã. Sou filha de um desamor crónico. Aos 4, 5, 7 ou 8 anos, eu apenas dependia do teu amor e esse esgotou-se. O teu amor era só areia numa ampulheta. Não tive irmãos. Não tive um seguro de vida com o qual pudesse contar. A necessidade de encontrar o amor para lá do berço, a redoma familiar, resultou depois em consequências funestas. “ Tu não prestas para nada”. Acho que me habituei ao desinvestimento nas relações colaterais, secundárias, amigáveis. O mundo continuou imperfeito. Aprendi a gostar de ser um caso solitário. 

Peço-te que não vás ainda. Espera pelo menos até amanhã. Amanhã é o dia dos meus anos e eu quero ver se te lembras do dia em que eu nasci. Era Dezembro. 

O céu desabava sobre as nossas cabeças e os sinos da igreja repicavam para o funeral da Fernanda. Lembras-te? A barriga dela, enorme, haveria de esvaziar-se da vida que trazia dentro, dali por dias. Apenas mais uns dias e o choro de outra criança haveria de fazer coro com o meu choro e juntas haveríamos de encher a aldeia com a nossa voz. Era também uma menina. O corpo dela que nunca se separou do corpo da sua mãe foi entregue aos bichos naquele dia de chuva. Chovia torrencialmente. Não havia anjo no céu que não chorasse a morte daquela menina. Nasci no preciso momento em que o cortejo fúnebre passou, e mal dei por ele, chorei também. Calei-me quando senti o suave embalo dos teus braços. E foi nessa altura, nesse preciso instante, escutando os passos de quem seguia na rua atrás do caixão que eu compreendi que morrer é a única consequência de se estar vivo. Percebi, logo ali, tão poucos minutos depois de me ter sentido viva, que aquela criança no ventre da Fernanda era eu também. Uma outra versão do meu corpo pequenino e frágil. Uma versão morta do meu corpo pequenino e frágil. A Fernanda, essa voltaria a ser novamente eu, quando o tempo me deixasse correr o suficiente pela vida. A versão morta do meu corpo adulto. 

Não vás ainda. Espera por amanhã. Sei que não me reconheces e há muito que não dizes sequer o meu nome. Tirarei a camisa branca que te ofereci num dos nossos natais passados e farei por encontrar o teu melhor fato. A tua melhor gravata. Já se passaram muitos anos desde que me deixaste à minha sorte, tecendo sozinha a minha teia. Mas ainda sei onde guardas as tuas roupas de domingo. Ficarei ao teu lado até amanhã. Preciso do brilho febril que baila nos teus olhos para garantir forças que não sinto. De outra maneira jamais seria capaz de te dizer tudo o que pretendo.
Amanhã já terás esquecido tudo. Não preocupes. Desta vez não te culpo porque sei que não é descaso. A verdade é que quiseste tanto e por tanto tempo esquecer-te de mim que Deus te fez a vontade e te tolheu o acesso à memória. É alzheimer, Dizem. Deve ser. Deve ser isso que faz com que me olhes todos os dias como se fosse sempre a primeira vez. Digo-te quem sou e tu olhas para mim com os olhos envidraçados de espanto.
Não te lembras, pois não? Não te lembras de nada. Podes até sentir-te aterrorizado com a facilidade com que as palavras, mais do que isso, as palavras certas, encontram o caminho e sentes-te ainda mais esmagado com a clarividência e limpidez do meu discurso. 
Claro que sabes que tenho razão. Sabes perfeitamente porque é que a cada dia que te odiei mais um bocadinho me odiava mais um bocadinho.
A partir de certa altura parei de te odiar. Não o fiz por ti, claro, mas eu precisava de sobreviver, precisava de reconstruir a minha teia com o meu próprio aço, porque para além de ti, e depois de ti, muitos outros predadores vieram no meu encalço. Precisava de começar a amar-me. De aprender a amar-me. Ao contrário de ti, eu nunca descartei a hipótese de viver. E tu nunca descartaste a hipótese de que apesar de tudo, eu vivesse. Contra todas as probabilidades. Foi uma aposta ganha. Se eu resistisse, provarias a ti próprio que a vida não se extingue quando em condições inóspitas. Talvez tivesses na experiência um aprendizado único e precioso. Se eu vivesse, tu poderias também viver. Vali enfim de alguma coisa. Fui a tua egoística salvação pessoal. 

Já te disse que o que acontece na infância nunca fica na infância? Claro que disse. Tu é que já te esqueceste. A maldita doença que te nega o acesso à memória impede-te de lembrar daqui a um minuto o que estou a dizer-te agora. Aposto em como olhas para mim tão silenciosamente porque já nem sabes como libertar o som das tuas cordas vocais. Será que pensas? Em que pensarás tu? Talvez te perguntes que raio estou para aqui a dizer. Talvez te perguntes quem sou eu. Quem sou eu? Sabes que eu sou?

Sou a aranha. Sou a aranha, lembras-te? Sou aquela aranha que mataste com as palavras. “Tu não prestas para nada”. Não sei porque usaste o cinto das tuas calças. Nunca precisaste dele para nada. Bastaram as palavras. Não olhes agora para mim como se matutasses obsessivamente na minha morte. Tu não és o presumível assassino da aranha. Tu és o assassino da aranha. Desculpa, dizer-te isto assim, mas sinceramente não vejo grande problema. Daqui a nada já não te lembras do que te estou a dizer agora. 

Tens alguma aranha sobre a tua cabeça? Na tua cabeça? No fim de contas, ela é a outra versão de mim. Uma inadvertida e abstracta companheira da tua solidão. O meu outro eu. Vim para ficar contigo para sempre. Para ser o teu ponto escuro. Depois de teres sido a sombra que se arrastou atrás de mim, sou hoje a sombra que se ergue sobre ti. Fiel vizinha. A dor crónica que como qualquer outra dor, por razões distintas elegi para as minhas deambulações filosóficas, é agora também a tua dor crónica. A tua culpa.

As últimas semanas serviram para nos unir num frenesim de memórias. Não dizes nada, mas sei que te lembras. O teu silêncio é o teu consentimento. Não foi sempre o silêncio de alguém, uma forma de consentir? Jogámos e dissimulámos. Tu com os teus olhos e eu com as minhas palavras. 

Tenho quase tudo dito. Mas ainda falta um bocadinho para amanhã. Fica só mais um pouco. Fica só mais este pedaço de tempo que nos resta até que a luz volte a nascer sobre o meu dia de aniversário. É Dezembro outra vez. Hoje não chove a potes nem passam marchas fúnebres sob o parapeito da janela. Está tudo calmo. Não se ouve o choro de uma criança acabada de nascer. Faltam poucos minutos. Dá-me os parabéns uma última vez e depois podes ir.

É uma pena que tenhamos deixado tantas coisas por fazer. Nunca brincámos juntos. Nunca jogámos juntos. Tive uma amiga de escola que jogava muitas vezes à cabra cega com o pai. E ao ringue, quando o sol se curvava sobre o mar. Às vezes, de manhãzinha cedo corriam às voltas na praça, ou andavam de bicicleta. Juntos. Já me esquecia. Eu nunca aprendi a andar de bicicleta. “ Tu, não prestas para nada”. Mas aprendi a jogar, apesar de nunca termos jogado a coisa nenhuma a não ser talvez ao jogo do amor e do desamor. Um amava e o outro desamava, até que desamavam os dois. O jogo do amor é o jogo da vida, e o jogo da vida é o jogo da morte.

Agora que as cores baças da tua íris ganham tonalidades desconhecidas, pergunto-me se alguma vez te deste conta de que até a morte tem brilho. Claro que tem. Se a morte não brilhasse não seria possível aos vivos encontrá-la no meio do escuro. Já está escuro. E a morte está aí. Ela brilha para que tu a encontres. Ela deve saber da doença que te impede de aceder à memória porque não está à espera que te lembres da Fernanda deitada naquele caixão no dia em que eu nasci. Para que a reconheças ela ganhou traços distintos, bem diferentes daqueles que a febre te impõe. 

Agora podes ir. Não te preocupes comigo. Estou salva. Um dia, ainda nos vamos rir disto tudo desenfreadamente. E então, também tu ficarás salvo. Livre do peso da culpa. Livre do peso das palavras. “Tu, não prestas para nada”. Será anedótico. Absolvo-te do assassínio do meu outro eu. A parte de mim que resistiu e sobreviveu transformou-se numa aranha diferente. Numa lutadora nata. 

Não precisas de verter lágrimas. Pára com isso. Daqui a pouco já não vais lembrar-te de nada. Podes ir. Encontraste o brilho da tua morte e ela não espera. Vai. Talvez a memória tenha uma ponte para o escuro. Para esse lado da vida que te aguarda. Talvez aí a doença não te vede o acesso ao arquivo das vidas que vivemos juntos. Se assim for, hás-de lembrar-te que te perdoo.

“-Parabéns.”

“-Obrigada.”




                                            FIM 



Kilimanjaro é um Conto que fala sobre o amor e os seus disfarces. Um homem e uma mulher que redescobrem o amor precisamente onde acreditavam que nunca mais o iriam encontrar. Publicado em Agosto de 2015 pela Capital Books no livro Todos por Um, que reúne contos de vários autores daquela editora.













Kilimanjaro


Naquela tarde, naquele fim de tarde, Joana correu uma vez mais pelo relvado do parque, subiu a estrada atravessando o bairro residencial, passou em frente da escola, onde, uma fila de carros parados aguardava a campainha que assinalava o fim de mais um dia de aulas. Tão mais fácil aquela leveza com que as crianças encaravam a vida. Era o início de Verão de um ano qualquer. Dali a poucos dias elas, as criancinhas, estariam de férias, votadas às brincadeiras e ao tempo que não se esgotava nem se compartilhava em horas para deveres, para isto e aquilo. Que saudades de ser criança. Parou de as olhar, quando o telemóvel lhe vibrou no bolso. O Luís. “Estou online”.
Acelerou a corrida, desejando com um passe de mágica atravessar o portão que a separava de casa. A pressa, a correria que lhe invadiu as veias, impeliu-lhe o coração a bater mais depressa. Desordenadamente. Um fulgor que aumentava dentro dela e lhe fazia formigar o corpo. Sabia que aquela era a hora em que o encontraria do outro lado do ecrã, mas naquele dia, havia-se atrasado. Recriminava-se por isso. Felizmente um vislumbre da casa ao fim da rua assomou-lhe os olhos, e em menos de nada, ali estava ela a atravessar o portão.  Não mudou de roupa sequer. Não havia tempo para isso. O banho habitual após a corrida dos fins de tarde teria que esperar. O Luís é que não. O Luís não podia esperar. Nem ela.
Roeu as pontas das unhas da mão esquerda, com o nervosismo que aumentava a cada segundo que o computador demorava a ligar, enquanto, com a direita deslizava os dedos sobre o teclado do telemóvel para avisar: “ Vou entrar agora.” Enviado.

-Olá.

-Até que enfim chegaste.

A frase de alívio dele saltou-lhe defronte dos olhos naquela janela de chat e fez-se acompanhar por um bonequinho cujo coração lhe saltava do peito.

-Tinha saudades tuas- Acrescentou ele.

Joana voltou a roer as unhas, hesitando na resposta. Queria dizer-lhe que também sentia saudades dele, saudades de um rosto que não conhecia, de um corpo que nunca havia tocado antes, de uma voz que imaginava ser quente e doce quando sussurrada ao ouvido de permeio com um hálito morno, próximo da sua pele, da sua boca. Mas a recordação de Pedro, assaltou-lhe os pensamentos. Era errado. Era? Ou melhor…seria? Seria errado assumir que a cada dia que passava, desejava mais outro homem que não o marido e mais vontade tinha de o conhecer?

-Eu também.- Acabou por admitir.- Demorei mais um bocadinho hoje. Desculpa.
-Estás desculpada. Que fizeste?

-Hoje? O costume. Nada de especial.

-Não é isso. Foste ao advogado?

-Ainda não.- Respondeu recriminando-se secretamente por não ter dado ainda o passo que faltava para a liberdade.

-Porque esperas? Ele bateu-te, certo? Se te bateu tens a lei do teu lado. Ele não tem como recusar.

Sim. O Pedro tinha-lhe batido.

“-Puta.”- Gritara-lhe ele. “-Minha grande puta! Andas cheia de outro qualquer e por isso não queres nada comigo! Quem é o chulo que te anda a comer? Diz-me!”

E mandara-lhe um estalo. E depois outro. Ela não tentara defender-se. Ainda lhe doía a cabeça no sítio onde ele lhe tinha agarrado os cabelos para a empurrar contra a parede. O lábio superior tinha rebentado e uma bola de sangue já seco salientava-se, exibindo para todos as marcas da violência de Pedro. Mas era a tristeza no olhar dela que o denunciava.

-Disseste-me que és casado.- Perguntou ela. - Nunca bateste na tua mulher?

Ele esperou algum tempo antes de responder. Por fim a janela do chat voltou a encher-se de palavras.

-Sim. Já. Mas o caso é diferente. Ela tem um amante e foi…, foi apenas uma vez. Perdi a cabeça.

-Tem um amante? Tens a certeza?

-Sim. Tenho. Ao contrário do teu marido que apenas tem suspeitas e com base nelas te agride, o sacana! Como é que permites isso?

-Ele também só me bateu uma vez.

As letras que lhe saltaram no ecrã eram maiúsculas e com vários pontos de interrogação.

-ESTÁS A DESCULPÁ-LO?????????

-Não. Mas não me pressiones. Quero pensar muito bem no que vou fazer.

-Se tu quiseres…eu posso ajudar-te.

- Ajudar-me? Como?

-Conheço um advogado…é meu amigo. Ele faz-te um bom preço. Gastas 400 euros e ficas com o divórcio. E se quiseres, eu mesmo lhe pago. Sei que não estás confortável economicamente.

-Eu…gosto de saber que posso contar contigo, mas não precisas de fazer isso, Luís. Prefiro ser eu a resolver os meus problemas.

-Não sejas orgulhosa, Joana. A vida não está fácil para ti, mas a mim não me custa nada ajudar-te.

A vida não estava fácil para ela. Era um facto. Já estava desempregada há algum tempo e se lá em casa as contas continuavam a ser pagas e não lhe faltava nada, podia agradecer ao Pedro que encontrara na medicina uma actividade rentável. Actividade que, curiosamente, era partilhada com o Luís. Eram ambos médicos, ambos especialistas em cardiologia, ambos trabalhavam em hospitais e tinham à parte disso os seus próprios consultórios. Na mesma cidade! Várias vezes se havia questionado sobre se, por ironia do destino eles seriam colegas, mas Joana nunca lhe confidenciara pormenores sobre a vida profissional do marido, nem perguntara a Luís nada mais além do nome, idade, onde morava, se era casado, se tinha filhos... Tudo o que sabia surgira em conversa, sem que para isso ela tivesse feito interrogatórios. Sendo assim, os dois poderiam perfeitamente partilhar o mesmo local de trabalho. E se…e se fossem amigos? Não. Isso já seriam demasiadas coincidências.

-Não se trata de orgulho. – Justificou. – É apenas uma questão de princípios. Estou habituada a resolver os meus problemas sozinha.

-Então não se trata de princípios mas sim de hábitos. Devias habituar-te também a receber ajuda dos outros quando encontras quem esteja disposto a dar-ta.

Joana desejou mudar de assunto. Assaltou-lhe de novo o espírito um desejo incontrolável de o conhecer. Como seria ele? Falavam há cerca de dois meses, sempre a horas certas. Horas em que sabia que Pedro estaria a trabalhar, alheio aos dedos que agora deslizavam sobre o teclado. Alheio às frases que se iam sobrepondo no ecrã, aos desejos que se iam mesclando com os medos, os suores que lhe humedeciam a pele atirados para fora das camadas subcutâneas por uma adrenalina sorrateira, sigilosa. Joana e Luís nunca haviam dado o passo seguinte. O do encontro. Não haviam sequer trocado fotografias. Um idealizava como seria o outro, faziam construções, colocavam hipóteses. E por entre as breves descrições tentavam adivinhar como seriam os seus rostos.

- Não imagino o que sou para ti, Luís. Mas quero ser-te mais que palavras. Mais que uma imagem parada, encolhida na tua retina, quero ser-te gente, carne e osso a encontrar-te a meio de uma ponte curvilínea, sólida, como aquelas que os romanos construíram para ligar terras distantes. Terras que de outro modo não se saberiam próximas.

- E eu… Eu quero-te mais do que as palavras que pressinto como enchentes a galgar, a alagar as minhas margens. Também não te quero só esta escrita.

Ambos fartos dos corredores de frases que criavam breves calores, mas que lhes gelavam o sangue quando lhes acrescentavam um ponto final. Eram agora um para o outro distracções, sopros de fé, um breve fogo que os tomava quando o indizível se intuía mas ficava por escrever.
- Não imagino o que sou para ti. – Voltou ela a escrever.

Era um facto. Não imaginava. Sabia apenas que ele lhe desconhecia a bagagem pesada, as toneladas de vida que carregava como uma escrava, África acima. Ela tinha dias em que soçobrava logo ali, no sopé de um kilimanjaro qualquer. Mas tinha também outros em que atravessava savanas, areias molestas e escaldantes. Caminhava brava e estoicamente até à sombra das árvores que germinavam dos raros oásis.
Mas afinal o que sabia ele dela? Nada. Sabia apenas que a queria. Que queria um amor fresco.
Mesmo que o adivinhasse um salto no escuro, um nada do qual haveria de se fazer luz, uma onda abrupta que haveria de irromper onde ainda agora o mar se ondulava em paz e serenidade. Afinal, o amor era renascimento. Ou não era? O amor, a renascença, a alegoria primaveril de Boticelli, as suaves brisas ao vivo, o reverso da teoria. Haveria de ser dele o amor dela. E para isso, teria que acontecer o encontro. O tão desejado encontro. Porque mais do que palavras e imagens, o amor tinha que ser encontro. E não podia haver encontro antes das borboletas a esvoaçar dentro do estômago, antes das arritmias no coração, da timidez a despontar na curvatura dos lábios quando eles sorriem.

O amor nunca vem sozinho. O amor vem sempre acompanhado de mistérios, mapas de tesouros em terrenos acidentados, difíceis de desbravar.
Seria um risco partir para o encontro. Saírem dali, saírem do conforto do teclado, exporem-se para fora da protecção do ecrã seria um risco. Mas também não era menos verdade que a vida para além do que escreviam era uma questão de alento, de surpresa, admiração, amor à primeira, à segunda vista ou nenhuma delas. Havia sempre que contar com o desapontamento, a constatação dos factos. E se nenhum dos dois fosse nada do que esperavam um do outro? E se…? E se…? Mas enquanto o amor não se tornava encontro não poderia ser amor. Do outro lado do ecrã as palavras não os transportavam para as pontas dos dedos. Para perto um do outro. Tão perto, que e as suas mãos se enlaçariam, os seus corpos se encostariam e fundiriam um no outro.

-Amanhã?- indagou ele esperançoso que finalmente ela perdesse o medo e o “sim”, o tão esperado “sim” lhe saltasse naquela janela de chat.

-Sim. Amanhã.

Até que o amanhã era hoje. E o hoje, o princípio de uma nova vida. O hoje era um fim e um recomeço. O hoje era um ponto final. Um capítulo que chegava ao fim e outro que se iniciava. Melhor ainda, uma nova história. Ficava para trás um Pedro, um namoro de vários anos, um casamento de mais uns quantos. Ficava para trás um médico e as suas ausências por motivos profissionais, os jantares a que haviam faltado, os aniversários que não haviam celebrado, as viagens que não haviam feito. Ficavam para trás as noites em que não dormira por sentir-se só, os dias em que a tristeza lhe roubara o sorriso, o prazer de entrar em casa, de dividir um sofá, uma cama, um orgasmo. Ficava para trás o sonho de perpetuar pela vida fora um amor que se haveria de multiplicar. Que ela desejara multiplicar. Multiplicar por mais sonhos e uma ou duas réplicas de si mesmos, para sonharem ainda mais. Multiplicar por mais amor que haveriam de sentir por uma ou duas réplicas de si mesmos para amarem ainda mais. Mas o sonho morrera. O amor morrera. Amanhã já era hoje e ficava para trás o amor que morrera.

Amanhã já era hoje e finalmente Joana esperava Luís. Esperava-o naquela esplanada com vista para as ondas revoltas do Cabo Carvoeiro, que à bruta se despedaçavam nos rochedos. Esperava-o aflita, o corpo em ânsias, o coração em chamas, a cabeça um turbilhão de certezas e mil turbilhões de dúvidas. Toda ela uma onda que se debatia contra o rochedo da vida, a dureza das circunstâncias que a haviam empurrado até ali, a fé que deixara cair no asfalto ao longo dos quilómetros que percorrera para ali chegar. A fé no Pedro. A fé no juramento que ela própria havia feito há vários anos atrás.

Olhou o telemóvel, depois de rodar a cabeça em todas as direcções, perscrutando o local, tentando adivinhar a presença do homem que ainda não conhecia mas que a arrebatara, lhe ganhara o coração, resgatara para a nova vida que despontava ali. Naquele local. Naquele momento. Não avistava ainda nenhum homem sozinho. Ou pelo menos nenhum homem sozinho com as características que Luís afirmara possuir.

«Sou alto, 1,85. Moreno, olhos azuis e cabelo castanho liso. Irei de Jeans e uma camisa branca.» Ele não estava. Não estava ali, nem no seu telemóvel. Não estava. Ela incidiu de novo o olhar sobre a caixa de mensagens, mal um toque a roubou aos pensamentos.

- Estou a chegar.

Joana sorriu. O coração de Joana sorriu.

-Não me quero em ti condensada no degelo da palavra escrita, no silêncio que tudo diz: o que se ganha e o que se perde, ali na hora. Não te quero em mim, apenas um olá pela manhã ou um adeus pela noite. Quero-te antes em tudo o que existe de permeio. Entendes o que quero?

Enviou a mensagem e a resposta rápida acertou-a de novo, bem no centro do cubículo cardíaco.

-Entendo.

Joana olhava para a porta, atenta a quem chegava e tomava o seu lugar na esplanada. Atenta a qualquer figura masculina que se assemelhasse ao homem alto de 1, 85m. Atenta a qualquer par de olhos azuis que revirasse o lugar também em busca de alguém.

O gelo que se afundava no copo de gin, antes a refrescar-lhe as mãos, transferiu-se para o sangue que lhe corria nas veias. O homem alto, moreno, de olhos azuis, jeans e camisa branca estava ali. Olhara primeiro em redor, para descobri-la no meio das outras mulheres que contemplavam as ondas do mar bravio, ondas loucas por se despedaçarem nos penhascos, e depois de a ver…o olhar tornara-se grave e o sorriso antes amigável, curvava-se numa clara intenção de morte. Morria o sorriso nos lábios de Luís…morria o sorriso nos lábios de Joana. Morria o sorriso nos lábios de Pedro. Pedro. Aquele homem era Pedro.

Amanhã já era hoje e finalmente Joana encontrara o Luís. Esperara-o naquela esplanada com vista para as ondas revoltas do Cabo Carvoeiro, ondas que à bruta se despedaçavam nos rochedos. Esperara-o aflita, o corpo em ânsias, o coração em chamas, a cabeça um turbilhão de certezas e mil turbilhões de dúvidas. Toda ela, uma onda que se debatia contra o rochedo da vida, a dureza das circunstâncias que a haviam empurrado até ali, a fé que deixara cair no asfalto ao longo dos quilómetros que percorrera para ali chegar. A fé no Pedro. A fé no juramento que ela própria havia feito há vários anos atrás. Mas aquele homem era o Pedro. O homem que a despertara de novo para a vida era o mesmo que a tinha conduzido à falta dela. Ao torpor. Ao adormecer do ânimo que antes a inundara. O ânimo que ele próprio lhe trouxera quando Joana o conhecera.


Ainda ele caminhava na direcção dela, ainda duas mesas e respectivos ocupantes se interpunham entre eles, ainda um empregado de mesa passava no meio dos dois, e já os olhos dela vazavam, os olhos, loucos para libertar água como ondas bravias, ondas que se desfaziam no rosto e formavam trilhos, ribeiros afinal mansos, afinal conformados com a descoberta.
Ainda ele tinha mais um passo para dar e já as mãos lhe tocavam, as mãos que antes a tinham abandonado, as mãos que antes a tinham agredido, magoado, ali estavam aquelas mãos a deslizar sobre o seu ribeiro manso, o ribeiro que lhe galgava a face e desaparecia sob as finas linhas do rosto. Ali estavam aquelas mãos determinadas a pacificar-lhe as emoções, a mostrar-lhe que afinal ela não era quem ele pensara, mas que importava isso agora? Que importava, se ela era afinal melhor que qualquer construção feita antes, quando as palavras eram o único elo entre eles?

-Amo-te. Redescobriu-o sem querer. Amo-te, que queres?

O destino, esse mestre da ironia, havia-lhes dado o único presente que nunca tinham desejado. Mas o amor não era afinal renascimento? O amor não era afinal a renascença, a alegoria primaveril de Boticelli, as suaves brisas ao vivo, o reverso da teoria?

- Não me quero em ti condensado no degelo da palavra escrita, no silêncio que tudo diz: o que se ganha e o que se perde, aqui na hora. Não te quero em mim, apenas um olá pela manhã ou um adeus pela noite. Quero-te antes, em tudo o que existe de permeio. Entendes o que quero?

Pedro roubava-lhe a pergunta que ela havia feito antes. Joana roubava-lhe também a resposta.

-Entendo.

Nas ruas, na chuva, nas gargalhadas, nos abraços que desfazem a aflição, eles drenariam a aflição. Todas as aflições.


- Quero-te nos meus olhos, em tempo real, ao vivo e a cores. – Garantiu Joana.

- Não imagino o que sou para ti. – Pedro beijou-a, os olhos azuis pousados nos dela, várias vezes repetindo a palavra “desculpa, desculpa, desculpa.” - Mas sei que não me queres a entrar em ti, dissolvido numa sopa de letras, nem eu te quero a ti esparramada num lençol de palavras que todos os dias me dizem tudo o que o amor é ou devia de ser. 








FIM 





Nota: Todos os contos aqui publicados são da autoria de Ana Cristina Pinto/ Ana Kandsmar

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