Monday 28 July 2014

Alcorão VS Tora... O Profano do Sagrado

Não há heresia mais traiçoeira do que o fundamentalismo religioso. Isto preocupa-me. 
Tomem-se os exemplos mais conhecidos, os vértices do triângulo mitológico formado por judeus, cristãos e muçulmanos em torno do mesmo Deus. 
Não é preciso mais do que um olhar, a leitura de duas linhas, um minuto do som que emitem, para termos a exacta sensação de que os fundamentalistas de qualquer das três doutrinas estão do lado do filme em que mora o bandido. Só para lembrar exemplos mais vivos na memória, cito três,- que, ainda por cima fazem ou fizeram a política do fundamentalismo religioso: Bush, Bin Laden, Bini Netanyahu (acreditem, Ariel Sharon foi quase um menino de coro ao pé dele). O que é que os três inspiram ou inspiraram? Ódio, medo, repulsa. No que é que os três basearam a sua popularidade? Na disseminação de ódio, medo e repulsa. E como medo, ódio e repulsa podem estar ligados ao que é divino, criador, iluminado? Só pela via da apropriação indébita. 
Os ditos fundamentalistas tomam para si o que não é seu nem de ninguém: a interpretação absoluta e definitiva do que se coloca como a manifestação do transcendente -- os textos sagrados. "Está escrito", rosnam. Sim, está escrito. Mas o que significa? Alguém escreveu, alguém representou, traduziu para uma linguagem, com todos os limites que uma linguagem tem, e que a faz, desde que o mundo é um mundo escrito e retratado, passível de interpretações.
 O exemplo que gosto de citar é a primeira frase do primeiro versículo do Evangelho de João: "No princípio era o Verbo". Que verbo é esse, com maiúscula, e que se atreve a "fazer-se Deus", e mesmo a "ser Deus"? Para mim, é extremamente claro: se o que foi dado ao evangelista para desenhar, designar, representar o infinito, foi a palavra, o escrever, o que pode ser mais infinito do que o verbo? João constrói, com maiúscula, o verbo dos verbos, o infinitivo absoluto. Confessa, em três linhas, que propõe no Verbo, a representação de Deus -- a mais grandiosa, na minha opinião. Pois bem, eu posso estar aqui a dizer disparates, consequência de uma aprendizagem individual que pode até ser duvidosa. Ou posso ter tido o “insight” do milénio. Não importa.
 A visão dos fundamentalistas, por ter sido interpretada autonomamente, eu não li nem encontrei lá o mesmo que eles encontram. Por isso não acredito no mesmo em que eles acreditam. E se eu perguntar a um deles o que quis o evangelista dizer, ele condenará a pergunta. 
O mundo, deste terceiro milénio, vê-se sob a sombra da batalha movida por esses sequestradores do sagrado, os que tomam como seu o que é de Deus. São literal e etimologicamente, os sacrílegos - aqueles que querem legislar o sagrado e, portanto, usurpar o que é de todos. O mundo está sob o domínio desta gente. Piorou com a reeleição de Bush (agora um passado infeliz). 
Os postos de Condoleeza Rice e Alberto Gonzales mostraram desde logo o caminho a seguir por uma humanidade expropriada do seu sentido: Humanidade. E hoje assistimos ao inevitável, tendo em conta o percurso feito até aqui. 
Vamos embalados nos braços de hereges vestidos de santos, até nos adormecermos. Deixamos que nos adormeçam. Sobretudo quando não são as nossas guerras, as nossas casas bombardeadas e os corpos de quem amamos mutilados.
 Há quem fale em anti-Cristo, a figura mítica do apocalipse popular. Não, esses tipos não são tão espectaculares assim! Ao mesmo tempo, são equânimes: são anti-Cristo como são anti-Maomé, anti-Abraão, anti-Alá… São sobretudo e acima de tudo, anti-todos-nós! - Já poucos reconhecem a importância da paz, simples assim, como deve ser. Apenas Paz.
 O problema crucial é: Nós, que almejamos a paz, só vamos vencer quando a palavra guerra deixar de fazer sentido e a palavra tolerância deixar de ser apenas uma palavra e passar a ser um modo de vida. Mas um modo de vida assim, não pode ser totalitário. A tolerância para poder existir terá que ser ela própria intolerante de vez em quando. Ou é possível mantê-la viva, sendo tolerante com os intolerantes? Não pode. E é por isso que esbarraremos sempre nesta perpétua condição humana. Haverá sempre uma “Gaza” por aí.
 É uma fatalidade que nos corre no sangue, não importa o tipo. Em algum lugar do mundo, a cada 31 de Dezembro, alguém dirá sempre: “ Feliz Atentado Novo”. 

( Escrito em 2004  para o  blog " Divagações". Continua tão actual! )