A Lenda do Havn ou de um Amor que (se) perdeu (n)o Norte


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Textos de Amor


Agora não é tempo de te escrever textos de amor. Os textos de amor quando escritos por mulheres, são apenas metáforas de feridas expostas ou de saudades enevoadas, saudades atrabiliosas, ruidosas, para os outros (para ti) jocosas. Os textos de amor que quando escritos por mulheres são um amontoado de pequenas ridicularias, coisa que aos homens que os escrevem, jamais são imputadas. Experimenta tu escrever um texto de amor. De ti faz parte o sentido da vida, a profundidade das coisas e das causas, as letras que debita um homem são sempre maiúsculas, e tu és um homem… Se houver um pódio para o alfabeto, elas estão lá, as letras que um homem escreve. Cabe-nos a nós (mulheres) as miudezas. As “coisinhas” de mulherzinhas que amam e são desamadas, que não esquecem e são esquecidas, que à falta de melhor põem no papel as tardes em que enfiam os pés numa praia e os sentem escorregar sobre pedras molhadas sem outro par de pés a escorregar com elas. Que se lixem então os textos de amor. Que se lixem os meus textos de amor. Os meus que não mereces, não porque os não lês, mas porque os não entendes, que eu sou (como dizes) intrincada, arrevesada, esquisita. Há uma longa vida sem ti e um envelhecer desamparado. Para ti serei, sobretudo… obscura. Há toda uma história com um só sentido, aliás, há toda uma história sem sentido desde tardes na varanda a olhar para cegonhas que intercalam tratados de eloquência com silêncios abissais e essas tardes são como quimeras. Nada aqui é perfeito para escrever um texto de amor. Já não oculto segredos nem confronto ofensas, não perdoo nem peço perdão… Tudo foi ontem. O nosso amor era amoral e hoje é esquecido, translúcido, presciente. Não duvida nem desconfia. Deitou-se num qualquer sarcófago, imbuído em formaldeído e envolto num sudário. Morto e seco, o nosso amor mumificado não dá um “ai” para registo póstumo. Para que vou eu escrever sobre ele? Quando vivo era um amor que não fazia cerimónia e tanto andava ao estalo como aos beijos. Um amor educado, levemente arrogante, um amor que não levantava a voz, não se ressentia e era alegremente ordinário. Quando vivo era vernacular, sempre a amputar o cinismo alheio, o nosso amor, um filho da puta canibal, que também era clemente como uma freira bondosa, daquelas a quem o altruísmo manda seguir para África. Era altruísta o nosso amor. Sacrificava-se por nós e pelas vezes em que não estávamos de acordo, vezes que eram muitas, vezes em que discutíamos até à exaustão e nem ele, que nunca se intrometia, nos fazia mudar de ideias. Era sempre ele, o nosso amor, que seguia em frente para outra coisa qualquer. Nada em nós se partia ou reconstruía, porque não era preciso. O nosso amor altruísta partia-se e reconstruía-se por nós. Até ao dia em que já não se reconstruiu. Hoje, esse amor que nos fazia favores que nunca agradecíamos, é um pedinte. Um pedinte morto que não diz nem cala, mas que assombra. Há nele um qualquer átomo revolto que nos desperta um ciúme azedo e súbito, mas volátil, que nos complica a vida. O nosso amor empedernido, o amor múmia que escondemos no fundo de uma tumba, reaparece de quando em vez para nos infernizar. É ele a velha alma reencarnada que nos reencontra ainda que já não nos possa aturar, ainda que farta das tantas vidas bizarras em que nos uniu. Quando o espreitamos pela nesga de uma memória ele (o nosso amor) pressente-nos e ignora-nos para nos obrigar a ser livres embora teimemos em mirrar em celas contíguas, dois prisioneiros a comunicar pelo sistema de ventilação e a engendrar irreais planos de fuga. 
A telepatia que já foi o nosso dom reduz-se hoje a uma amálgama de palavras escritas, os textos que podes dizer que são de amor, mas não, não são. Não os escrevo, porque esses são coisas de mulherzinhas, ridicularias que não ouso transpor para um cordel de letras. A telepatia que já foi o nosso dom é hoje uma artimanha de quem não quer esforçar-se muito. Sofro de preguiça e conformismo. Quero apenas que te lembres das noites à lareira, da praia ventosa com os veleiros em mar alto, da paz perfeita naquela torre quebrada e dos gins improvisados com xarope de groselha. Quero que te lembres. Não para que voltes, que a vida sem ti está boa e recomenda-se mas para que definhes e seques. Para que te atires para um qualquer sarcófago, te imbuas em formaldeído, te envolvas num sudário e mumifiques. Para veres se te aguentas só com as lembranças. Fá-lo. O nosso amor fê-lo. E aguenta-se.



Eternidade 


Foste-me tanto de belo, quanto de inesperado. 
Poderia dizer-te sem exagero, que me surgiste iluminado a transgredir a paleta cinza com que pintava os dias. Afinal, emanaste de ti um calor que me cozeu o frio na barriga e brilhaste-me nos olhos quando os pousei na arquitectura do teu corpo. 
Refinaste-me os sentidos para que eu acutilante e desperta saltitasse do vislumbre do teu sorriso quente para a agilidade das tuas mãos. 
Atravessámos as pontes que antes se erguiam entre nós e passeámos pela vida de mãos entrelaçadas, espreitando os reflexos dos nossos risos no espelho do rio,no brilho azulado da passadeira pintada de fresco. 
Absorvemos os odores das esplanadas e os outros, trazidos pelos ventos aprisionados no redondo das praças. 
Despertámos em par, para os pequenos nadas. Intensificámos os sentidos com que desfrutámos do aroma dos chás, das notas do piano e até mesmo do pigarrear das aves que se lançaram das nuvens para mergulhar nas copas nuas das árvores. 
Percebo hoje que me tiveste como um sorvo rápido a intervalar o tédio dos teus dias e eu tive-te como o cigarro que me desaparece nos dedos enquanto alienada te penso. Mas fica sabendo que me coubeste na exacta medida desses poucos esplêndidos minutos. Que ainda hoje dissolveria lentamente a minha relutância na espuma do teu café e passearia no teu corpo dobrado sobre o meu. 
Foste e serás sempre uma promessa de escrita e voo assarapantado das palavras dentro de mim.
 Se às vezes quase te peço que fiques é porque me apetece guiar-te como se eu, teu único itinerário possível, uma estrada principal ,te levasse a percorrer as curvas do meu corpo. Mas não peço. Prefiro deixar-te livre para voltares se quiseres. 
Até onde posso ser um arremedo de tristeza que se manifesta no escuro, quando mais ninguém me vê? Não sei. Mas sei que ainda acrescento em ti a vontade da minha pele e das minhas intolerâncias nos teus ouvidos. 
E tu? Até onde ainda me iluminas, rasgas, aqueces, refinas e dissolves? Já reparaste que se nos víssemos à velocidade da luz, ainda o ontem era agora? 
Ainda o eram neste preciso instante, aquelas pontes, os rios, as listas brancas da passadeira, a praça fechada sobre nós, a rapina de um bater de asas, o passeio pelo teu corpo dobrado sobre o meu? 
Já reparaste que um dia, que pode ter sido apenas um nas nossas vidas, foi afinal tão grande que ainda é? 
Eu reparei agora mesmo que continuará a ser porque vai durar a vida inteira, sabes porquê? 
Porque aquilo a que tu chamas de saudosismo, eu chamo de eternidade.


Bipolaridade do Amor




Volta e meia deixo-me reduzir aos pormenores que fixei em tempos na retina. 

Escondi nas entranhas demasiado de ti como se eu algum dia te pudesse usar para abarcar o desígnio maior das nossas vidas juntas. 
As esperanças que um dia me vogaram insensatas, hoje fazem-me contas de cabeça, numa estimativa duvidosa entre as perdas e os ganhos. E o que é interessa isso agora? Hoje eu subo e desço as ruas que já calcorreei contigo e detenho-me à porta do chinês na esperança de ainda ver a mesa que quase sempre ocupávamos, as cadeiras naquela posição oblíqua, meio tortas, para nos colarmos ombro com ombro, e penso: Porque é que isto fechou? Porquê as teias da aranha e o pó enlameado nos vidros pelos pingos de chuva, ao invés de um vestígio, um só vestígio do que já foi, quando nós também fomos? Dou-me conta de que um dia tem 86 mil e 400 segundos e eu queria nem que apenas por um, ver-nos de novo ali dentro. Tu a espalhares a soja nos crepes enquanto eu faço caretas e me atiro à Família Feliz, que regurgita na chapa. 
Pouco me importa se te sei esparramado num qualquer colchão Made in Aalen, a dividir a tua fatia de stollen que se esmigalha entre o teu corpo e outra “coisa” qualquer…
 É o teu sabor na minha boca, mesmo que já não me beijes há séculos, antes e depois de Cristo, é o teu andar desengonçado que arrasta a minha sombra, mesmo quando vou sozinha. 
Já há muito que perdi a noção do quanto se intervala a tua presença na minha vida. 
Estás sempre cá, mesmo não estando. E se hoje é assim, amanhã pode não ser. 
Tanto me faz. 
Aprendi as vantagens da indiferença. 
Encontro na urgência que me consome um disparate sem cabimento. A minha vida cronometrada por figuras que se estendem para além do meu corpo, tanto podes ser tu ou uma Luana que deixei há 30 dias a mapear o Nebo. És tão imaginário quanto ela. E talvez seja isso a bipolaridade do Amor: num dia ele é físico, presente. Toca-nos com os dedos e a pele emaranha-se no nosso corpo com nós de marinheiros e no outro…no outro ele refugia-se algures no enleado complexo do nosso arsenal de memórias. Num dia, a razão desvaloriza-o em nome da sobrevivência da espécie e no outro a emoção abarca-nos inteiros e induz-nos a práticas irreflectidas que roçam o indecoro e a insanidade. Um dia tem 86 mil e 400 segundos e eu queria nem que apenas por um, entrelaçar as minhas pernas nas tuas. Abdico dos remates intrincados. Escuso-me até ao exagero dos nós de escota ou lais de guia e renuncio até ao cerrar das pálpebras, que invariavelmente me levariam a dormitar sobre o teu corpo. 
1 segundo é quase nada… não há tempo sequer para se morrer…mas é o suficiente para que milhões de homens e mulheres, acordem de manhã lado a lado, brevemente completos, brevemente embalados por impressões difusas de felicidade.




Sinais...



Preciso de saber de ti, mais do que preciso de ti. Mas aguento-me. 
Estoicamente ignoro que quero saber por onde andas, o que te move, a quem te dás e por onde te deixas. Imagino que por vezes te movas bambo, trémulo, por entre o desgosto e a indiferença, por entre a inércia e a euforia, mas nem disso tenho a certeza. Suponho-te, quase tanto quanto te amo. 
Sei que por aí já sentes a Primavera a amolecer-te o corpo e a tingir de turquesa o mar, embora pressinta que não repares nisso, ocupado que estás em amesquinhar as coisas. Para mim ainda é Dezembro. Dói-me o corpo e estranho-me, só sinto frio. Mas recuso-me a recordar a última Primavera. 
Prefiro ficar naquele Inverno, lembras-te? Quando olhava a Foz no horizonte e te esperava por entre a espuma das ondas. Há um travo cómico/trágico na desmesura com que não estamos, uma dimensão teatral que polui a realidade e exacerba a distância (de continentes afinal, apesar de tão poucos, os quilómetros). Ardo por ora numa combustão sem propósito, não sei se só da raiva ou da saudade que me deixas. No entanto ambos sabemos que te odeio e… que me odeias. 
Perdemos o fio ao amor e só queremos ganhar tempo, para cozinharmos o ódio até ficar no ponto. Depois…bem, depois o ritual do nosso encontro passa por frases cirúrgicas atiradas um ao outro. Somos loucos de poucas palavras. Tu mais cerebral, eu mais certeira, ambos armas de fogo com silenciador. Já lá vai… uma vida inteira desde que não falamos. Não sabemos um do outro…nada. Sinais de ti, só quando o meu telefone toca. 
Silêncio. Reconheço-te. Desligas. 
Sinais de mim, só quando o teu telefone toca. 
Silêncio. Reconheces-me. Desligo. 
Há um rancor que me rói a pele e me estraga os planos, de cada vez que me lembro do limbo sulfuroso em que nos movemos, da insegurança pantanosa onde às vezes nos afundamos. Ainda ontem éramos felizes. 
Tenho medo de não conseguir mudar, de que um dia só me saiam frases de guerra, iguais às que me habituei a trocar contigo. Hoje, mas só hoje (porque faz exactamente uma vida inteira desde que não falamos ), sinto-me liquida, desfeita, a gerir a saudade e o rancor em partes iguais, expectante e mal resolvida. 
Não aguento, sabes? Não saber por onde andas, o que te move, a quem te dás e por onde te deixas. No entanto, podes guardar para ti o escárnio que é a ponte para a nossa crueldade porque, sinais de mim, só quando o teu telefone toca. Silêncio. Reconheces-me. Desligo.

Afinal ainda cá estás


 Há pouco, quando te apanhei distraído aí desse lado a espreitar a monotonia da minha afeição por ti, senti-te outra vez aos solavancos no meu corpo, numa indecisão já tão antiga entre o ires e o ficares. Ficaste. Quieto, mudo, assim como quem não quer a coisa. Pensava eu que já tinhas saído calmamente, pela ponta da minha língua que tantas vezes deixou o teu nome à solta. Achava que tinhas por fim, abandonado a minha pele através das pontas dos meus dedos, depois do tanto que te escreveram até que lhes doessem as palavras. 
Estava certa de que até os fios dos meus cabelos te tinham finalmente expulsado à força de tanto se quebrarem na impaciência de já não poderem esperar por ti. 
Acreditei que te tinhas esfumado, misturado com aquela névoa que vai apagando os dias da memória, aqueles mesmos dias que ficam longínquos e inalcançáveis como fios de papagaios que se soltam e lançam ao ar. 
Mas, eis que afinal, ainda aqui estás. Foi afinal em vão, o trabalho de te escoar. Não significou nada o esforço de anos, o exercício de desmame gradual como quem deixa um vício, uma droga.
 Posso jurar que te vi um dia, saíres-me agarrado às lágrimas que te chorei. Dei-me conta de ti a apanhares boleia nelas, como se te deixasses levar numa onda até à costa, escorrendo pela minha cara até ao chão. Mas afinal, de nada me serviram as vezes que me deixei a deambular pela casa, como um espectro solitário em busca de luz. 
Eu, entre paredes e a tua imagem projectada na minha mente, a fungar e a limpar o ranho, enlouquecida para que saísses, nem que fosse aos bocadinhos: primeiro as tuas mãos cá fora, num esforço desesperado para te agarrares ainda a qualquer pedaço de mim, depois um braço e o outro, a seguir as pernas, os pés, o rosto, o sorriso, tu por fim inteiro. Mas não sei o que aconteceu. Nem que fenómeno físico se deu. Só sei que voltei a intoxicar-me de ti, como se me fosses uma mistura de químicos e eu um tubo de ensaio. Cresceu-me a vontade de te rever. Relembrei-me de repente do quanto me deixei amar-te e do porquê de te amar. Aquilo que já não achava ter para te dizer formigou-me na garganta e depois nas pontas dos dedos. 
Afinal ainda não se acabou o stock de saudades nem se esgotou o desejo de um dia destes as matar, com o meu corpo sobre o teu num qualquer vale de lençóis acetinados. Não adianta que me perguntes como é possível que após tanto tempo, ainda viva tanto de ti em mim, porque me tens afinal em ti em proporções iguais. A única diferença entre os nossos amores, é que o meu por ti é todo ele invertebrado, teimoso e atrevido ao passo que o teu, o teu é bem mais estranho, porque embora também um arremesso de pimentas doces, ele é preguiçoso. Às vezes inerte e indolente e nunca, nunca significa nada. Costumas tê-lo a marinar, conformado na fé quase cega de me teres numa espera eterna. E isso é um erro que cometes em cada dádiva de vida que te é depositada no acrescento dos dias. É que apesar deste amor que te tenho, curtido e defumado, este amor inteiro e consistente, eu sou livre e aguerrida. Podes constatá-lo sem esforço. 
É claro que ainda me tens as pernas apertadas em cio nas curvas traiçoeiras da noite. Mas também sabes que o tempo e a distância são obreiros do desamor e trabalham entre nós cavando a dissolução dos nossos contornos um no outro. 
Não duvides que vou conhecendo, entretanto, outros contornos. E também não te admires se um destes dias, um deles acabar por me subir a orla dos vestidos, entrando certeiro nas meias de liga. Daí até à escalada que culminará no cubículo cardíaco que me ocupas, será só uma questão de toque. 
Tu sabes o que é para mim o “toque”. Conheces-me bem as exigências da alma que são bem maiores que as do corpo. Afinal, tu próprio só ainda cá estás porque insistes em ter-me enredada nesse nó górdio que os nossos corpos etéreos se deram e ainda não deslaçaram. 
Mas sabes… à conta de tanto acosto à minha pele, à conta de tanto beijo e língua e sexo e sémen que não o teu, a minha alma ainda me obedece e quando deres por isso, já tens a tua a zarpar numa viagem interestelar com bilhete só de ida.



Fantasma dos Natais passados   



Quase sempre volto aos nossos invernos. 
Não é que esse seja o nosso tempo, porque ambos preferimos esta promessa de estio, os dias luminosos e os corpos estirados ao sol. Mas lembro-me do conforto que era darmo-nos as mãos enluvadas, enquanto o calor se soltava por baixo das roupas quentes em espirais de desejo a colidir com o vapor na atmosfera fria de Dezembro. 
Claro que temos uma história que se conta nas praias de areia branca e águas cristalinas. Temos um amor em tempo de maresias e de sol a arrastar-nos para a moleza dos dias. Mas também temos um épico de dias frios e incertos em que os bafos quentes que emanavam as nossas bocas ansiosas, demasiado próximas, nos faziam recear os dias em que elas estariam demasiado longe. 
Temo-nos por esses dias, os corpos enrodilhados como os cachecóis em volta do pescoço a baralhar-nos as coordenadas das certezas absolutas. 
Sinto tanto a tua falta. Tenho saudades dos nós que nos dávamos, dos corpos nús em meio de uma urgência dorida, o prazer redescoberto em frente dos troncos que ardiam preguiçosamente na lareira. 
Sinto falta dos natais e da tua implicância com os enfeites da árvore. 
Prefiro esses dias invernosos, repletos dos calores com que nos suávamos, à suavidade deste estio que se adianta, sem as tuas carícias neste vento suão. 
Quero suster-te, para que nunca me ultrapasses ou fujas na lembrança dos meus olhos fechados, as tuas pálpebras caídas sobre as maçãs do meu rosto, afogueadas, dormentes de frio. Não quero esta promessa de noites quentes em que não me passeias por sobre as areias finas da praia, nem me baixas as alças dos vestidos primaveris. 
Prefiro ter-te para sempre a pele fria e arrepiada à procura das temperaturas altas da minha.No fundo, quero apenas a magia das noites de Dezembro. Desejo-te e já te pedi ao Génio da Lâmpada. Não me importo que me venhas sortilégio de Quebra- Nozes. Só não quero que deixes de ser o meu fantasma dos natais passados na ternura doce e reconfortante dos teus braços.



Sonho-te...


Muito bem. Escrevo-me. De mim. De ti. Não de outro. De ti. Sonho-te.

Imagino-te o tronco nu, pés descalços no piso radiante a subir-te a temperatura. 

Noite escura. Ao longe só o vislumbre de um risco no firmamento a curvar-se no horizonte até cair no mar. 

Sigo-o num impulso de fé, com um rei mago que procura o Salvador. Aí estás. O rosto fechado (ainda zangado, tu?), um encolher de ombros, um gesto rápido, porta aberta. A mim, basta-me uma frase curta: (apetece-me), em especial se sincera. Não porque o pretenda ser ou faça por isso, mas porque a verdade circula nos meandros que me compõem. 

Então tu recolhes-te, como se um corpo estranho se encostasse ao teu e a minha frase simples, que devia traduzir a reacção adequada à provocação perde o sentido. De tão normal e mediano, o motivo simples que me traz aqui, faz-me sentir diferente, avariada, sem remédio. Deve ser por ainda estares zangado. Sinto-te zangado. Talvez ofendido. E eu que conduzi até te chegar perto com tanto para te dizer, sinto por isso as palavras a morrerem-me na garganta ainda antes de nascerem: letras avulsas que correm em mim como linfa. Lês-me. Já me conheces a loucura e o desgoverno, já percebeste que me alimento do excesso que crio; a normalidade é autofágica. Para mim é. 

Preciso de mais e ainda que prefira a razão que me permite ser fugaz (a razão, esse conceito que me é longe como um recorte de cordilheiras), opto por não ver a vida na progressão geométrica do desespero. 

Às vezes, acordo e estremunho, mas nem por isso mais lúcida, apenas mais cansada. Às vezes até penso que só não sou uma criatura sombria porque não me levo a sério. Sabes, dizem-me que eu tenho um dom. O da escrita, dizem. Um dom. Eu rio-me para dentro, porque … escrever não é um dom nem uma bênção…escrever pode ser uma maldição, sabes? 

Repara que eu não preciso de fazer nada, mesmo nada, para sustentar o meu delírio. Basta-me isto. Escrever. Esconder o desvario nas palavras que me escapam dos dedos e encaixar num recanto de mim mesma frases normais, que me fazem cócegas todos os dias. Bom… seja como for… sonho-te. 




Tu então a dares-me espaço para me esquivar entre o teu corpo e a porta de um elevador inédito, que se encaixou ali, abrupto, e nos levou numa escalada íngreme, a ti à tua porta, a mim à tua boca. 

 Acomodo-me no pouco espaço entre nós e é então que reparo. Primeiro andar. As tuas rugas subtis, finas como nervuras de folhas, enfeitam-te os olhos risonhos, que obviamente se divertem ao verem-me ali a “apetecer-me”. 

Segundo, terceiro. Percorres-me com os olhos que mais parecem dois miúdos à solta num parque de diversões,as curvas recentes e as saliências antigas, enquanto eu estática, parada, avariada. 

Quarto andar. Com um agrado tão displicente que mais parece fortuito, dás-me um abraço fraterno e mostras-te contente, como quem há muito não vê um amigo querido de quem já pouco se lembra. 

Quinto. Não te quero contente. Nem que estejas sinceramente agradado por me veres, ora essa. Sim, sei que estou óptima, não preciso que mo digas. 

Sexto. Quero-te nervoso. Expectante. Torpe. Não me atires com esse sorriso encantador que dispensas habitualmente aos passantes, aos meros conhecidos e amigos distantes. Sétimo andar. Quero-te compungido, ao menos incomodado. 

Oitavo. Quero que me olhes com a expressão aflita que fazem os que dão de caras com o que mais desejam, mas tentam disfarçar. 

Nono. Vá lá, cobiça-me um bocadinho enquanto permites que o meu perfume te invada as narinas. Não vês que estou doida para mo lamberes no pescoço? 

Décimo. Apresentas-te um tudo nada perturbado, ou apenas nostálgico, pronto. 
Engoles um suspiro, reprimes um soluço. Décimo primeiro. Começo a pensar que isto foi um erro. Não devia ter vindo. Não me ligas nenhuma. Décimo segundo: Imagino que me vais convidar a entrar, ofereces-me um café e olhas para o relógio de dois em dois segundos até que eu me toque e te desampare a loja. 
Décimo terceiro: Devemos sair aqui? 
Atreve-te a não fechares a merda da porta antes de ela se escancarar para o corredor. Quero que me comprimas contra o painel de controlo, gagueja, mete os pés pelas mãos, transpira mais, embacia o alumínio à nossa volta com o teu calor exacerbado ou então, pelo menos, o brilho nos teus olhos com a névoa da excitação. Não? 
E se eu acordar e te deixar aí pendurado, às voltas com o tesão entre as pernas, o teu corpo inteiro a arder como se absinto em chamas, tonto, torpe? Vais amuar e fazer o beicinho para que eu volte a adormecer?





Gosto de gostar de ti...

Ontem voltei a passear-me pelo calçadão que circunda a baía.
Entretive-me a mirar a altura do muro, tentando medir o ponto exacto onde raspavam as raias dos meus saltos altos, enquanto o teu corpo bamboleava incerto no vaivém extasiante dentro do meu. 
Reparei nessa noite em todas as coisas que mais tarde havia de gostar em ti. 
Ainda não sabia da tua curiosidade sobre os meus lugares recônditos, aqueles em que eu me guardava…coisas minhas, eu… e já te gostava assim: curioso. 
Gostava da abrasão gentil da tua barba e do modo como me olhavas a sorver o cigarro, atento aos pormenores. Os pequenos gestos ritualados que se misturavam na curva dos meus dedos ou a minha forma recreada de soltar o fumo: uma espiral de argolas soltas que se desmanchavam quase sempre na ponta do teu nariz. 
De dizer o teu nome em voz alta. Gostava. Muito. 
De quando me tentavas irritar cantarolando um sucesso gasto da música pimba, concentrado na minha expressão de enfado. 
Gostava da tua meiguice desmedida, desse jorro de ternura que não me dava tréguas, e de quando todos os teus poros faziam por me agradar, embora me agradasses tanto com tão pouco esforço, assim, tão natural como a tua, a minha, a nossa sede. 
Das corridas pelos corredores dos supermercados. Gostava. Muito. 
Das manhãs entre lençóis desalinhados, a desgraça das roupas pelo chão, as tentativas madrugadoras de filosofias vãs… Gostava. Tanto. Tanto quanto gostava da exasperação rotineira dos arrumos, a senda das toalhas molhadas, do botão do forno que afinal não ligaste; o aroma do teu after shave a inundar a casa. Gostava que os domingos se tivessem multiplicado pelos anos, numa sequência feliz: Páscoas calmas e poeticamente primaveris, enquanto degustamos licor de café numa varanda florida e carnavais desenxabidos e sensaborões, em que o corso na rua se carrega de matrafonas e crianças geladas nas suas asinhas douradas que me apertam o coração de pena e de riso. Gostava…gosto. 
Gostava de dizer ainda…que gosto… de quando te perdes na linguagem crua do prazer e dizes que me fazes e me aconteces e que eu isto e aquilo, enquanto a tua boca substitui algures em mim as tuas mãos. 
Gosto da voz grossa e arrastada, desse elã melancólico feito de poesia, as tuas e as minhas memórias misturadas; whisky velho, infância feliz e sons da rádio. Da canção de intervenção sempre na ponta da língua, a nossa fricção amena: ideais que fraquejam na incongruência do elitismo bairrista e que por vezes sacaneiam as convicções de esquerda. Gosto. 
Que não precises de olhar pra trás quando passa uma mulher bonita, que nunca me largues da mão quando andamos na rua e que me agarres e me puxes quando um carro se aproxima. Sim, gosto. 
E da coragem com que me entraste na vida? 
Da inconsciência juvenil com que abriste caminho em mim? 
Do espírito de aventura com que me desbravaste tristeza fora? 
Dessa tua insegurança tão masculina de quem que não tem a veleidade sequer de sondar a parafernália esquizóide que são os mistérios femininos? Sim, sim, gosto. 
Gosto de te ser tantas coisas: a tua deusa, o teu dormir, a tua dona, a tua demanda; um aviso pela manhã, um rebate de consciência, um aperto no coração, um consolo, um eco, pontas soltas, arritmias, formigueiro. 
E gosto dessa tesão a desoras, quando me adivinhas em cio, o meu corpo desprevenido no escuro enquanto o resto à solta, são sonhos indecifráveis. Gosto, gosto, gosto! 
Do que é que não gosto? Pouca coisa: apenas de que já não estejas aqui.

A Raridade do Amor

Abdicaria de ti, eu, se não fossem as vicissitudes da vida, os caminhos bifurcados e confusos, as linhas imperfeitas com que nos cozemos, como aprendizes que somos neste chão esquálido? Não. Nunca fui eu a arquitecta deste edifício em que nos tornámos, esta catedral de infortúnios, ziguezagueada, torre de Pizza em iminente precipício. Fui antes teu par ímpar numa caminhada íngreme. 
Compreendi-te todos os pequenos nadas que queriam dizer sempre alguma coisa. Alguma coisa que até podia ser vulgar, de uma vulgaridade importante. 
Ainda trago comigo a dimensão nova que me deste aos dias, aqueles mesmos dias em que juntos fomos capazes de transformar a chuva em delirantes orvalhos ou os Invernos em estações de rosas rubras. 
Pessoas como nós, possuem não uma, mas todas as vidas. Amamos e entregamo-nos porque ao amar também partilhamos as mãos e o corpo. Eu escuto enquanto me beijas, a transformação do cansaço em esperanças aliciantes. 
Eu toco o teu e tu o meu rosto com dedos de água pura. 
Tu soltas-me os cabelos e eu a ti a vida, com a leveza dos pássaros que trespassam o céu num voo a pique até às copas silenciosas das árvores. 
Somos afinal um bater de asas. Sim, reconhecemo-nos nesse bater de asas a firmeza de uma flecha. 
Tu respiras e fazes-me inspirar o azul que há no dorso das manhãs. 
Eu estendo-te os braços e tu apertas-me até nos sentirmos os corações a transformarem-se no peito, de notas soltas, acordes solitários que se esbaldam sorrateiros para uma mescla sonora de orquestra. 
Eu não te peço nada e tu tens tudo para me dar. 
Abdicaríamos afinal de nós, que não sabemos ser ícaros nem prisioneiros, como o são milhares de homens e mulheres da estatura da vida, da beleza e da justiça, do sofrimento e do desejo? Não. Compreendo agora que nunca o fizemos porque somos daqueles que se interrogam, daqueles que encontram a resposta para todas as perguntas nos olhos e no coração de quem está à nossa frente. 
Somos afinal tão poucos os que por toda a parte deixam uma flor para que ela possa levar beleza e ternura a outras mãos. 
Somos quase ninguém quando contamos os que estão sempre ao nosso lado para nos ensinar em todos os momentos, ou em qualquer momento, a não sentir o medo, a reparar um gesto, a escutar um violino. Somos nada, sabes?
 Fomo-nos tanto, tudo… tudo o que era para sermos, mas somos tão pouco em meio a sete biliões de almas que se perdem na falta do que nos fomos, que não podemos abdicar de nós inteiros, unos, divididos em partes iguais desta coisa rara que é o Amor.



Alteridade da Ficção

Já faz tempo que não te escrevo. 
Decidi-me a parar por uns tempos, dedicar-me a outros registos que não me obrigam a tirar as palavras das entranhas. Elas têm estado como a minha vontade de te escrever: Quietas como um bicho à escuta. Vai daí eu tropeço em qualquer coisa tua e mexo-lhes. Às entranhas. É por isso que me saem agora em remoinhos de dor pela boca, às golfadas. Preciso de as serenar antes que a dor se infiltre outra vez nas minhas reentrâncias, nas reentrâncias da própria dor que se come por dentro. Ter o que te escrever, contradiz-me, é certo. Logo eu que me tenho alimentado a restos de silêncios e detritos de lembranças mudas, não devia recomeçar agora com este enredo de palavras gastas. 
Na verdade, quero lá saber se em tempos me chegaste à curva do pescoço com beijos distraídos…ou se me soltaste letra a letra, da prisão das minudências do dia-a-dia e se eu te ansiei pelo gesto que assegurou a pertinência do amor…
Na verdade, depois de depositados os beijos, as palavras espreguiçavam-se, meio sonolentas e abriam-me a boca devagar. Preguiçosas, não saíam. Voltavam às entranhas, como se depois de espreitarem o tempo lá fora, se recolhessem, encolhidas de frio. Foi quando deixaste de depositar os teus beijos no meu pescoço que elas acordaram. Respiraram como um vinho velho depois de aberto.
 Não obstante a tendência que sempre tive para as calar fundo, por defeito e por feitio, treparam-me e contrariaram-me, qual salmões subindo o rio na desova, e eu escrevi. Primorosa e conscienciosamente. 
Não sei se feliz, porque afinal nunca inventei histórias felizes. E com todas me condoí. A única coisa que eu sempre quis no fim de cada uma: voltar para a cama e envolver-te o ressonar com os braços mornos, confortada com a alteridade da ficção. 
Lá fora, haveria de chover. Tu deverias estender-te ao comprido, com os pés no meu colo, enquanto os meus dedos andassem para cá e para lá ao longo do teclado. Centenas de palavras haveriam então de me fluir fáceis, predominantes, eloquentes. Mas não…ao teu lado elas passaram a vir forçadas, com hora certa, demarcadas da escassez notória do tempo que me exigiam, porque to dava a ti. 
O teu beijo, cada vez menos distraído e mais compenetrado da sua condição de beijo, selava-me as palavras. Por essa altura, eu já não dormia e caminhava por negras veredas, meio cega, perdida: um espectro dentro de um corpo, um sopro de vida, o reconhecimento apenas da fome. As palavras, deixei de as experimentar antes de as usar; de as provar, de lhes testar a síncope, pois tanto fazia, e, por fim, arrumei-as inúteis a um canto. É surpreendente que em oposição, tenha sido precisamente a escassez do teu beijo a fazê-las jorrar de novo, livres… como as águas impiedosas de uma cascata. 
Partiste e devolveste-me o léxico, o talento, a vontade de acordar com o sol e de conversar com Deus. Percebes agora o quanto precisei de ti para chegar até elas? Era preciso dizer-te muitas vezes “amo-te”, para que eu entendesse em definitivo o que a palavra Amor queria dizer.


Não Queiras Saber De Mim





Ontem vi-te. 

Não, não te vi ali a contornar a rotunda enquanto me dizias adeus com a mão a acenar fora do vidro. Nem te vi lá em baixo à porta, de mala pousada no chão, enquanto esperavas que eu a abrisse. Vi-te em mim, ou melhor, na minha cabeça, quando o semáforo vermelho me obrigou a parar na longa fila de veículos que invadiam a rua. Vi-te no labirinto desajustado da minha mente, que invariavelmente se auto-enlouquece em segundos de viagens ao passado, esse mesmo tempo irrecuperável onde te encontras. 

Olhei-me, como se os meus olhos se virassem para dentro e vi-te ali entre as minhas dúvidas, os meus medos, as incertezas que foram ganhando forma no espaço que ia sobrando entre o amor que me sentias e o que me impedias de te sentir. 

Olhei-me e vi-me a deitar-te fora, com pressa de me livrar de ti, uma ameaça biológica, arma química pulsante na explosão eminente de uma ogiva nuclear. 

Olhei-me e vi-me a arder, toda eu bola de fogo, trôpega e desajeitada, numa lamuria lesta, cheia de dores e receios. Esse amor, essa energia imensurável que me consumia, desatinou-me. Deixou-me em ânsias por me livrar da aflição que me causava. 

Olhei-me e vi-me a livrar-me desse amor, a pousá-lo em qualquer lado para que outros lhe pegassem, outras te pegassem e te fizessem melhor proveito. Foste-me afinal um nado-morto, uma saliência maligna, um tumor errático que me doeu (e ainda dói) em tudo o que me é… meu, eu. 

Olhei-me e vi-me terra, a ânsia de me ser firme e coesa, nem que para isso tivesse que te permitir descolar, abrir caminhos espaço afora, cada vez mais distante, sempre em fuga. Não era eu, quando me chegaste. E não fiquei eu quando me partiste. Deixei-me de ser quem conheceste e tornei-me silêncio de pedra, paralisia, mágoas contadas. 


Deixei-te ser águas passadas. O que podia ter sido um rio, tornou-se charco lodoso e raso, estagnado até ao fim dos tempos, um micro cosmos à escuta, em silêncio, terrificado por terrores soturnos e nocturnos. Há muito que eu e tu deixámos de reflectir o sol e a lua. Ontem, quando te olhei, vi que não soubeste o que fazer ao meu amor. Aqueles breves segundos em que o vermelho do semáforo me deteve, bastaram para que te visse a olhares-me para dentro, como se o que te senti fosse apenas o fantasma de outro amor. Um amor incorpóreo e vingativo que sem querer eu fui avivando nas tuas memórias velhas e enrugadas. Foi então que o meu amor se volatilizou, não foi? De repente sentiste-o a escorregar pelo vão da escada, a encaracolar-se, desalinhando as molduras na parede, atirando tudo ao ar, arrastando correntes de ar gélidas que nos despertaram os medos. 

De repente dei por ti, um cigarro esquecido que se consumiu entre os meus dedos. Mas hoje foste-me. Já não me és. E isso atormenta-me como o pesadelo recorrente em que passeio descalça num pântano lodoso e repleto de bichos ou aquele em que o elevador cai e eu lá dentro me apavoro numa descida sem fim. Já não me seres, condena-me àquele lado mais feio da vida em que todos os dias são de chuva e todas as estações um longo inverno. O Amor já não é Amo-te e quantas vezes passou a ser detesto-me, porque já nada me seres atira-me para a fragilidade e a secura, a aridez e o desmaio, a punção lombar e a paragem cardíaca. Já nada me seres, torna-me a mim pior. Muito pior do que quando me eras. Há dias em que me sinto revés, outros em que sou mesmo um mau dia de praia, uma fatalidade que interrompe a fina sequência dos dias. 

Enquanto nada me és, eu continuo a ser-te uma mensagem críptica encerrada numa garrafa velha, carcomida pela erosão das águas, eternamente à deriva, que tu não lês nem decifras. Sou-te o livro aberto no epílogo.
Entretanto, tu aí enfiado na teia desse passado impiedoso que não se chega à frente, não se cola ao aqui e agora, afundas-me no caos onde reina a falta de harmonia e me falha a cadência e o propósito. Nada me seres é apenas um pequeno mal. Na verdade, o menor dos meus males. O maior é seres-me para sempre um ferrão de abelha cravado na pele.





A Brevidade do Amor








É tão mais fácil escrever do que falar contigo.

Quando falamos, falamos de quê? “Olá, tenho saudades”. Sim que bom, tens saudades. Tens alguém? “ Não, não tens nada a ver com isso”.

É tão mais fácil dizer aqui que te amo e depois ficar a imaginar a tua cara enquanto me lês. Olhar-te assim nos olhos e soltar para a ponta da língua as palavras que já se habituaram a viver nas pontas dos dedos, é difícil. Muito mais do que imaginas. 

É um caminho demasiado longo para percorrerem. O trilho imenso, a travessia das falanges, o pulso ali mesmo à beirinha da radial, a dor e o cotovelo, o périplo até aos ombros que se encolhem ao frio da tua imagem, a boleia da jugular às amígdalas, a entrada triunfal nas cordas vocais e por fim o som: a.m.o.t.e. Amo-te. Assim, simples não? Ou devia de ser. 

Mas sabes, habituei-me aos silêncios. Descobri o conforto das palavras, do som das teclas em vez da voz, o tempo mais que precioso para pensar a construção frásica, os pontos, as virgulas, as reticências. Connosco foram sempre as reticências. Nunca tivemos um ponto final. Um verdadeiro ponto final. E se calhar por isso mesmo é que nos quisemos tornar leves e fáceis, sempre e só preliminares. Não passar do meio- termo, da fugacidade das horas contadas, a visita tardia de médico.

 Ainda hoje, repara, há entre nós urgência de entrar e pressa de sair. É tão bom, não foi? A palavra amor repetida no orgasmo, o léxico enganado pelo gozo rápido, nada de mais. Depois semanas, meses, anos sem uma palavra, ambos desconfiados da aridez e indiferença um do outro, do nosso amor de segundos, e convencidos, sempre convencidos de que não servimos para nos termos perto, para sermos, eu para ti e tu para mim, a âncora, que no fundo, lá bem no fundo queremos ser mas não somos capazes.

 O melhor que consegues forjar é uma estúpida e redonda ironia de quem realmente não se importa. E eu, o melhor que te dou em troca é esta ideia tola e perfeitamente descabida de que não me importo que tu não te importes. 

Imprimo-me a distância, convenço-me de que menos é mais e rio-me da minha ilusão de achar que não me és preciso. 



Tenho noites em que sonho contigo e desejo acordar de manhã com a convicção de que nunca foste histeria nem o reboliço da espera, borboletas no estômago ou antecipação húmida do toque. Mas ao invés dessa piedosa formatação onírica, abro os olhos consciente das nossas pausas e intervalos, da suspensão e da brevidade. 

Os dias amanhecem-me sempre com a tua ausência e a falta que me fazes. 

E se por acaso, como hoje, te aproximas e ficas aí desse lado, com os olhos postos nos meus à espera que eu diga mais do que pouco ou nada, então eu sou investida de uma vontade quase sobrenatural de te ter no sitio do costume. Na distância cómoda e segura do passado.



É Oficial: Esqueceste-me.



Sou uma dessas tolas rendidas ao conforto do cepticismo quando se me anuncia a notícia nas gordas dos jornais: É oficial. Esqueceste-me.
 Ao invés de aceitar o facto, ali na primeira página e nas notas de rodapé que abrem a informação em horário nobre, o que faço? Rio-me zombeteira do sensacionalismo barato, da pobreza jornalística e desatino no zapping corredio pela centena de canais. É oficial, esqueceste-me. Qual quê? Quero comédias românticas, P.S. I Love You, As Palavras que Nunca te Direi perdidas num qualquer Diário da nossa Paixão. Quero a fuga da Verdade Dolorosa ali escarrapachada em Diário da República, numa mescla de revogações e contorcionismo legislativo, daquele que é geral e obrigatório em todo o continente e ilhas.

É oficial. Que se fodam as notícias, a indiferença que me tens escancarada nas capas das revistas, nas páginas dos jornais online e na tinta dos papéis. Que se fodam as notícias. Que se fodam os ardinas que te apregoam nas esquinas dos cafés, o alinhamento dos telejornais e os RM’s das rádios. 
Reúnam-se as comissões, apresentem pareceres. Se me esqueceste como ditam os press release que invadem as redacções, as circulares e os folhetos gratuitos da publicidade, então prova-o. Mas prova-o com relatórios conclusivos. Apresenta testemunhas oculares, as armas com que mataste o amor que me tinhas, a perícia balística, o local do crime, as impressões digitais. 
O que os média não dizem, é que quando te cansas dessa “coisa” morna e insípida com que te deitas, te rebolas na cama com a escassez da minha pele a incendiar a tua. E que até a recordação do meu beijo te queima os lábios como uma beata esquecida. E é por isso, apenas por isso, que a mim não convencem as notas oficiosas, ou os dizeres nos leads das notícias. 
Estava até capaz de te exigir um desmentido formal, em conferência de imprensa. Havias de te curvar perante a voracidade jornalística até te deixares abalroar pela torrente de perguntas, a imensidão de microfones e câmaras televisivas. 
Havias de recear a própria vida, e de te encolheres à agilidade agreste com que se amontoam e empurram os abutres da informação para te arrancarem a verdade. Nada mais que a verdade. E eu havia de ver-te declarar oficialmente em directo e em diferido, que sim, que ainda me amas e essa é a única razão de lembrares os meandros da minha boca e de me quereres ao teu redor a meio da rotina fastidiosa em que transformaste os teus dias.









O Canto das Sereias

E eu a dizer-te que ninguém se cruza por acaso. 
Que há em cada passo que damos, para o norte ou desnorte, um propósito. Um sentido que torna tudo decifrável, compreensível. Tu a teimares no quanto somos pequeninos e insignificantes, (não merecemos afinal, mais do que um acidente fortuito durante o qual esbarramos em quem, devido à violência do choque nos entra pela vida adentro), (assim, sem mais nem menos), enquanto eu protesto e bato o pé na descrença da casualidade, convencida, (querendo convencer-te), que és tu e que me seres tu e não outro, é porque ninguém me podia ser para além de ti. Que até de um plano, (que nenhum de nós se lembra de ter traçado) fazem parte as transgressões a que nos submetemos e que elas aniquilam a linear vulnerabilidade das nossas escolhas.
Se a tua loucura subjuga a minha, é, tão somente para que eu consiga por fim, dormir à noite com a cabeça no teu colo. Porque me és (e não é por acaso que me és) um arremedo de paz. Porque me és uma espécie de príncipe encantado, prestes a enfrentar (por mim) os meus dragões e que até, (porque nada é por acaso) me apareces pronto, de espada em punho, a entrar pelas masmorras onde me escondo e definho (desde sempre à tua espera, sei-o agora, perante a inevitabilidade do fogo nos teus olhos), e que me resgatas do cansaço que é não pertencer a lado nenhum.

Vi-te por momentos uma espécie de lar, um porto de abrigo. A circunstância casuística que te impeliu a que me olhasses e me gostasses contra todas as expectativas.

Pensei que chegasses, que não perdesses tempo com mal entendidos nem mudanças de planos e que nos sublimássemos no rodopio inebriante da descoberta do amor.

Foste tu a passar no crivo solitário do meu cubículo cardíaco e eu a sentir o medo, o frio na barriga e as pernas bambas. Fui eu a saber-te lobo (im)paciente e tu a quereres comer-me e a temperar-me a jeito para te saber melhor. Fui eu a querer-me ser comida e tu o beijo que me queimou, as mãos que se deram às minhas. És (e não é por acaso que és), a voz que me atabalhoa na linguagem confusa e confortável que o amor escolhe para se fazer ouvir, mas também és, nesse timbre que me soa ao canto das sereias, a expressão dorida e consternada de um amor que por acaso, (mas só por acaso), não pode ser.






Contigo à Distância



Não sei se me lês.
 Não sei se como eu, cometes todos os dias este exercício de coragem e cobardia, que é espiar-te por detrás das cortinas e arrebanhar-te todos os bocadinhos que me permitem ter alguma ideia, qualquer ideia de ti. Mas se me lês, sabes que cada palavra minha leva-te ao chão uma e outra vez na tentativa de te varrer da minha vida. 
Não sei se é o destino, o fado ou tão somente a língua de Camões a dar o nome a esta doença que sinto a domar-me o corpo e a envenenar-me a alma. Mas sei que estás à distância da minha saudade e eu tenho problemas com a saudade. 
Saberás tu como se mede a saudade? Eu também não sei. Só sei deste formigueiro no meu peito, esta dormência selectiva nos meus órgãos vitais, esta falta de ar, as monções que à mínima lembrança tua, irrompem dos meus olhos. 
Gostava de ao menos arredondar aqueles minutos em que te sinto não sei em que parte do mundo, trazido até mim por um qualquer satélite escarninho, teimoso, que nunca me deixa ouvir a tua voz. 
Até esse alheamento nos meus olhos, quietos, como se também eles à escuta de um arfar que seja, um sopro involuntário da tua respiração, eu seria capaz de esticar em dias bem medidos dessa nostalgia dolente. 
Tenho momentos de dilúvio em que me aponto para ti como uma bússola e, sem mesmo o saberes, ensinas-me o caminho, conduzes-me a bom porto, com a gentileza de quem agarra um cego idoso pelo cotovelo e o ajuda a atravessar a rua. 
Não me suponho dotada de excessos magnéticos que te atraiam de forma igual, e, no entanto, há algo que me espicaça e perturba: saberás tu dos teus dedos e dessa mania que eles têm de premir o meu número nas teclas do teu telefone? Ou será a tua maneira de te entenderes seguro nesse espaço que medeia entre o que é ter-te fisicamente, a tua pele a roçar a minha, e sentir-te longe, mas aqui dentro, aos empurrões no meu peito? Ou será apenas uma forma de contabilizares uma saudade que afinal também é tua, prendendo-a a ferros entre esses dois mundos tão precisos, tão definidos no espaço e no tempo, o físico onde os corpos se tocam e o etéreo onde as almas se amam?
 Se me lês, dás comigo a vasculhar aqui as memórias, com a minúcia de um arqueólogo, como se com isso eu possa saber mais alguma coisa tua. Como se a tua permanência na minha retina não fosse já claustrofóbica que chegasse, impedindo-me de respirar os dias. 
Acredita que se aqui me encho de palavras é porque quero tanto esvaziar-me de ti. 
Guardo comigo a consciência quase dolorosa de que, por ti, ter-me-ia atrevido a escalar a Cordilheira do Atlas, teria explorado os fiordes da Patagónia e derramado Himalaias de amor sobre ti. Mas não creio que se acaso o tivesses sabido, alguma coisa entre nós tivesse sido diferente. E sabes porquê? Porque nos inventámos demais. Porque nos idealizámos para além do permitido. Porque trouxemos connosco, para este mundo doente e imperfeito a lembrança ancestral da plenitude e da perfeição. 
E porque afinal o verdadeiro amor, não se coaduna com a insignificância da condição humana nem se deixa mitigar pela ignomínia dos nossos defeitos.







A Lenda de Havn ( ou de um amor que (se) perdeu (n)o norte)




Imagino o que faria se à minha frente se estendessem as águas cinzentas de onde se eleva a Orsunde. Ou quanto tempo demoraria a contemplar as paredes de Rosenborg.

Procuraria nas fachadas do Christiansborg a forma da tua boca? 

Perscrutaria a arquitectura da cidade, entediada com os vestígios dos vikings, enquanto deslaçasse o sentimento agreste que antecede a perda?

Guardaria os caracteres rúnicos, segredos só por ti desvendados e sorriria aos passantes, atirando-lhes à cara a arrogância de quem possui algo de único e de reservado, de exclusivo e de impraticável, como uma estância de luxo ubicada nas águas turquesa de outro continente qualquer? 

Trago-te em páginas inteiras de ficção e deixar-te-ia de bom grado entre as linhas que Odin deixou para a eternidade. 

Algures, um oráculo ecoa na modernidade dos prédios e ordena-me que corra para longe, sob pena de morrer às mãos do Deus de Asgard numa luta desigual em terras de Nifflehein. Aqui as trevas e o frio só podem anunciar derrotas e outras desgraças. 

Vejo o teu sexo nos pilares e nas cornijas, em evocações fálicas que me divertem e acendem, alheia que estou à mediocridade das analogias, embora o enunciado de tragédia que leio nas auroras boreais me devesse acautelar o riso e a insensatez.

 A tua língua, é o voo nervoso de Fafnir, o dragão que hesita entre um beirado derruído e a estátua adorada da Pequena Sereia de Andersen. 

Quando finalmente eu te vencer, sabe-lo-às. Sentirás que me escorres pelas minhas pernas e quando caído no passeio, eu seguirei sem dó nem dores, qual soldado da Liga Hanseática. 

Voltarei a sentir pequenos espasmos de alegria como o são os risos incontornáveis das Valkyrias e retornarei ao cronometrar seguro de todos os momentos do meu dia, sentindo-me refém do meu próprio desencanto, mas, em casa, de novo em casa. 

Apressar-me-ei a mergulhar na água azul da Foz, enquanto tu incerto e insapiente, te afogarás na Fonte de Mimir, a mesma que afoga todos os desejos nos corações dos deuses. 

Em breve, quando me cansar das tuas mitologias nórdicas, das fábulas élficas e da minha crença em ti, deixarei de ser a súcubo vernacular em que me transformaste para regressar ao mundo das horas contadas, das cortesias sem sentido e dos contarelos familiares.

 De quando em vez, acredita, espreitar-te-ei trancado no interior da minha caixa de Pandora e uma vez aí, não haverá Afrodite que te salve nem Hínero que nos una. 

Não é que alguma vez tenha esperado pelo Concílio no Olimpo, mas acredita, para mitologias, prefiro a grega.





Dias Seguintes...





A praia foi nossa até ao poente nesse dia, lembras-te? 

Salgada, molhada e quente, um extenso tapete de areia que se fez colchão, o sol a abrasar-nos a pele, tu a dares-me a volta à cabeça e nós às voltas um no outro. 
As minhas pernas molhadas abriam-se para ti, descaradas a pedirem-te que afundasses em mim vigorosos mergulhos. 
Tu agarrado ao meu corpo como a um salva-vidas, ias e vinhas, como ondas do mar, e eu, colada aos teus lábios como aos de um náufrago, em respirações boca a boca para que não te afogasses. 
Ao fim do dia, as marcas dos nossos dedos deixavam sulcos de limpa-areias na nossa pele, consoante te ias submergindo mais em mim, um explorador das profundezas entre as tuas pernas, e eu, cá dentro, uma rede de recifes de coral e grutas de uma anatomia simples, a encherem-se das tuas marés.
 As nossas camadas geológicas enfim, corroídas pela paixão. As nossas sombras, mais estreitas a cada minuto que nos trazia o crepúsculo, repetiam os movimentos dos nossos corpos, como se também elas sentissem o deleite do toque, do cheiro do amor acabado de fazer. 
Salgado, o mar onde nos refrescámos e gozámos a rebentação das ondas, indiferentes aos pescadores que passavam, que espiavam, invejosos das tuas explorações subterrâneas, dos meus beijos no teu umbigo, nos pêlos eriçados do teu peito, ínvidos até, da tremura das minhas pernas rendidas à onda gigante de prazer que fazias avançar sobre o meu corpo. 

Hoje, sempre que vejo o sol na sua última curvatura púrpura, antes de afundar no oceano, lembro-me desses dias em que me fizeste feliz.E mesmo agora que, de pés nus na areia e olhos postos no horizonte, descubro o arqueamento do mar, aquela linha adunca que outrora marcou de fins o mundo e penso que não há coisas inultrapassáveis. 

Mas há aquelas com que não sabemos lidar, e essas são cantos de sereias, na verdade, marés vivas que extravasam os limites do areal e nos arrastam para o turbilhão das águas. E nós, convencidos de saber navegar, não intuímos o perigo da pressão do oceano nem das paredes de corais. 
Quando por fim nos demos conta do cabo das tormentas, já tínhamos caído no abismo dos dias seguintes. 







É então também assim o amor:

 Um fio de arame onde nos equilibramos e sustemos os nossos vazios simétricos. 
É a vida que vislumbramos para lá da porta, não importa qual delas abrimos. 


O amor é tanta coisa, mas também é isto:

 Um vislumbre inquieto no futuro ou uma névoa parada no passado.





Possibilidades...



Pergunto-me das possibilidades. 
Se podia ter-te encontrado, se podia ter esperado por ti no sítio do costume, ou logo ali a seguir à ponte, onde a calçada calcorreada de beatas me suportaria o peso do corpo impaciente e nervoso.


De certo que eu chegaria primeiro, entraria no café onde vendem aquele pão-de-ló meio cru, perscrutaria minuciosamente todos os lugares, as cadeiras de madeira gasta, na expectativa de te encontrar sentado numa delas, mas não.

Como sempre, eu esperaria por ti o tempo suficiente para um gin e dois ou três cigarros, um “Ontem não te vi em Babilónia” aberto na página 23, só para me fingir distraída, feliz ignorante dos teus minutos de atraso que se estendiam pela noite adentro até me encontrares exausta espreitando-me a incontinência nervosa das mãos pelo canto do olho.


Alguma coisa teria sido diferente se nos tivéssemos encontrado? Alguma coisa seria hoje diferente se tivéssemos mais uma vez percorrido juntos o paredão encostado às areias vultosas da Foz? Provavelmente não. Mas nunca o saberemos. 

Consolo-me pela tua ausência tentando adivinhar-nos um destino a dois, aquele mesmo que já vivi contigo enquanto espreitava os retrovisores vasculhando as ruas, medindo os perfis dos passantes, tentando perceber-te num deles. 

Felicito-me por já não atentar ao mar de carros que serpenteia pela cidade a cada manhã embaciada, esquadrinhando marcas, matriculas e condutores. Hoje pelo menos tenho-me calma. A minha vida é finalmente o que eu sempre quis que fosse: um bom filme ordenado, cronologicamente sereno, perfeitamente editado, com um guião unicamente escrito por mim. 

Se tivesses voltado a ela (à minha vida) teria de lidar com os caprichos de outro autor que não eu própria, teria de planear contigo as cenas ou deixar-me surpreender pelos teus improvisos. Será que se tivesses voltado à minha vida eu seria na mesma esta película a correr serena no fio dos dias, a fluidez precisa e constante de uma estória em que se adivinham as falas e os episódios seguintes? Não creio. Mas são muitas as possibilidades. Contudo, sei a diferença que farias se tivesses voltado à minha vida. 

Poderia não ser uma diferença para melhor, é certo, mas hoje o filme seria outro. E talvez tivesse até um happy ending. Não sabemos nada. Avançamos às cegas e duvidamos se isto que se parece com  alegria é só o sinal definitivo de que nos voltámos a enganar.





É a liberdade que o sentir único de cada um de nós, nos dá, que nos permite amar sem consentimento.

Não
 precisamos, 
entenda-se, do
consentimento de ninguém,
dos outros, do outro e nem sequer de nós próprios.
Porque o amor está nas coisas mais simples e nos processos mais lineares.


Tanto pode começar no anel de diamantes, como no botão de rosa envelhecido.