Wednesday 1 October 2014

O valor das coisas

Tenho duas gavetas na sala onde só guardo tesouros. Coisas de muito valor.
Uma tem pacotinhos de supari, masala tea bags, caixas de incenso, sabonetes de açafrão e sândalo, um sari lindo, rendado, fiadas de flores de jasmim já secas e esboroadas e ainda um cd de Ravi Shankar. Um cd que quando toca, solta um som tão mágico e envolvente como só uma cítara pode ter. 
Na outra, tenho postais ilustrados. Alguns, oferta de amigos e familiares próximos que foram fazendo questão de me mostrar que eu estou no coração deles. Outros, alegremente infantis, feitos pelas mãos dos miúdos. 
As palavras ternurentas com que me brindaram nessas recordações de infância, carregam tanta ternura e fé na mãe que eles acreditavam ter, que ainda hoje guardo tudo com a convicção de que se a minha casa sofresse um incêndio, seriam estes pequenos (grandes) tesouros que eu tentaria salvar a todo o custo. 
Quando tenho saudades da Índia, enfio o nariz na gaveta e deixo-me inundar pelos cheiros do mercado de Margão enquanto a cítara de Ravi Shankar enche a casa. 
Quando é a nostalgia dos filhos ainda pequenos, os cheiros das loções para bebé e os pós-de-talco, os bracinhos pequeninos a enlaçar o meu pescoço, os choros a meio da noite a interromper o sono que foi entretanto roubado por um papão adulto e egoísta…quando é a saudade imensa de ser assim tão importante na vida de alguém: um farol, uma torre, uma fada… as fotos que me mostram os seus rostinhos risonhos não me chegam. 
Preciso das palavras. E então leio naqueles postais infantis o maior amor do mundo, cristalizado, perene, imortal. 
Um dia, eu hei-de morrer e a Índia, continuará a ser a Índia. Com ou sem dejectos e cadáveres que bóiam indiferentes ao choque dos turistas, o Ganges e o Yamuna, continuarão a ser os rios onde adoraria  molhar os meus pés. 
Um dia, eu hei-de morrer, e o amor dos meus filhos por mim e o meu por eles continuará vivo. 
Com ou sem dramas próprios da nossa convivência, também ela indiferente ao choque de gerações, os nossos dias juntos, serão talvez a minha única marca relevante no mundo. 
E é por isto que me são tão importantes estas duas gavetas. 
Em mais lado nenhum guardo tanto valor. 
Tudo o resto só tem preço.