Thursday 10 March 2016

O Canto das Sereias

Queria deixar de gostar de ti. 
Extrair da minha pele as marcas perenes das tuas mãos e ser capaz de me esquivar desta loucura silenciosa que se enclausurou aqui dentro. 
Não sei se sabes, mas a minha saudade é intermitente. Chata. É uma raiva insustida que tem sede do teu beijo e viaja melancólica no tempo até àquele momento preciso em que a tua voz ecoava nos meus ouvidos. Hoje queria-te diferente, sabes? Não esta ferida incómoda que não sara, esta incisão aberta a segregar o pus da tua ausência. Não me posso arrancar os membros um a um até que me esvaia em sangue para me esvair de ti. Nem tão pouco me posso deixar vencer pelo cansaço nem pelos rancores nauseantes que as milhas entre nós me fazem percorrer. 
Queria, era aparecer-te linda, ciente dos pormenores de que não abdicas: saltos altos e rendas nas lingeries que ainda guardo para ti no fundo da gaveta. Queria abrir-te as pernas e o coração para que te alojasses sem pompa nem circunstância, com pleno direito de usufruto por toda uma vida, para além da vida. 
Queria voltar a sentir-te o toque, as tuas mãos a roubarem-me a roupa com brutalidade e os teus olhos a derramarem ternura pelos cantos. 

Quantas vezes nos magoámos e levámos em braços? Quantas? E quantas vezes nos demos colo enquanto nos espetávamos brutalmente nas costas, objectos longos e perfurantes que as nossas palavras materializavam? 
Quantas vezes sem nos matarmos, lutámos em batalhas sangrentas só para que nunca deixássemos de nos cheirar, para que os nossos sentidos se mantivessem alerta, um na direcção do outro, sempre? 

Tive dias em que desejei infundir-te desespero, provocar-te lágrimas e feridas só para que viesses depois até mim para que eu as lambesse. E tu, sei-o bem, tiveste dias em que me querias longe e ainda mais me querias perto, à mercê dos teus pés, das tuas mãos, da tua loucura e devaneios constantes. Tiveste dias de ciúme e desvario a imaginar-me com todos só para teres motivos válidos para me arrasares. Eu enrolava-me a um canto como um bicho, consumida pela culpa, arrependida dos sinais, dos fumos, dos morses, das malditas palavras mal conjugadas, mal pensadas, mal… ditas. Adeus, fins e despedidas… tantas que nos afogámos no lamaçal do sofrimento, caímos no abismo da distância. 

Queríamos ter a certeza de que nunca seríamos felizes e esfregámos essa fé na cara um do outro enquanto nos pegávamos nas mãos e passeávamos, insuspeitos assassinos do amor que nos unia. Se, era isto que queríamos, digo, o querermos e não termos, a última deixa, o último acto, o cair do pano, a machadada final na única árvore do bosque… Porque é que desde então, intercalamos risos cínicos com gotas de fel e sal que brotam dos breves instantes em que deixamos ecoar na nossa estupefacção a palavra maldita que nos enfraquece os joelhos? 
Sim, é verdade que me convenço que é tua a disfuncionalidade e que a plantaste em mim como uma semente negra, uma bolha prestes a rebentar, um vírus rápido e mortal. Mas existe a tal palavra maldita que me enfraquece os joelhos. E quando ela ecoa, quando ela me escapa sorrateira e se mistura com tudo o resto que sempre te quis dizer, mas não disse, quando ela manhosa, se evade do ardil em que se esconde e se infiltra subtilmente no emaranhado das minhas cordas vocais, eu volto a enrolar-me a um canto como um bicho, volto a consumir-me pela culpa e a perguntar-me, porque é que não te mando agora sinais. 
Os fumos e os morses, os cantos das sereias, uma sms apenas, onde a palavra maldita estivesse presente: Amo-te.

Escre(vi)ver

Não sei se escrevo por gosto, necessidade ou se por vaidade. 
Talvez o faça por todos esses motivos e outros que não fui ainda capaz de descortinar. Acima de tudo, acho que escrevo para me esvaziar. É a minha forma (quem sabe?) de me ir matando aos poucos como se de um golpe na ulnar se fizesse a escrita e o meu sangue jorra-se criando frases com os meus fluídos, textos com as minhas vísceras e livros inteiros com várias partes do meu corpo.

 Descarto-me assim de coisas minhas que já não quero a morar em mim. Histórias grandes, extensas, complexas, cenários, personagens que vivem através de mim o que me cabe apenas imaginar. Crio universos que dependem do meu punho para que não fiquem eternamente desabitados. Escrevo realidades e misturo-as com sonhos, quimeras, mundos apocalípticos, renascidos, que me soam ao canto das sereias e me desafiam a viver neles. 

Escrevo sobre a folhagem seca que cobre os caminhos do Parque no inicio do Outono, sobre a escalada íngreme até ao cume do Atlas, a cordilheira dos Andes e o voo dos condores, o calor sufocante do Alentejo, a bela Liége e os seus aquedutos, os assobios do vento nos temporais, os gritos contidos nos velórios, as manhãs cobertas de nevoeiro, a ponte a serpentear sobre o Tejo, a minha India tão linda, tão colorida, o meu amor hindu, a minha Goa, a minha Varanasi, a minha…vida. 

Escreverei outra vez um livro. Outro que me obrigue a renascer nele. Um outro que tenha uma capa resistente ao descuido das mãos, orelhas com a minha biografia, a minha foto a preto e branco a fugir os olhos à objectiva. Escreverei um livro cujas páginas sejam almas de criaturas vivas e as letras bem visíveis terão notas de rodapé a bold, como prenúncios do luto na última página. 
Quando olho para o meu livro, (aquele que já escrevi),no meio de todos os outros na minha estante, vejo um pequeno livro de folhas brancas. 
Todos os outros têm folhas amarelas, um amarelo velho, quase fazendo parecer que as suas páginas são sujas, encardidas por dedos que os folhearam, virando as páginas uma a uma. Encardidos pelo pó acumulado dos anos. 
O meu não. O meu livro tem letras pretas em páginas brancas que me fazem lembrar mosquitos mortos sobre a neve. O meu livro branco imaculado, parece intocado, nunca lido. Escreverei outro livro. Um de páginas encardidas. Nunca mais quero escrever um livro branco.