Leituras




Os ninguéns: os filhos de ninguém, os dono de nada.
Os ninguéns: os nenhuns, correndo soltos, morrendo a vida, fodidos e mal pagos:
Que não são embora sejam.
Que não falam idiomas, falam dialetos.
Que não praticam religiões, praticam superstições.
Que não fazem arte, fazem artesanato.
Que não são seres humanos, são recursos humanos.
Que não tem cultura, têm folclore.
Que não têm cara, têm braços.
Que não têm nome, têm número.
Que não aparecem na história universal, aparecem nas páginas policiais da imprensa local.
Os ninguéns, que custam menos do que a bala que os mata.

Eduardo Galeano in “O Livro dos Abraços”.





A fidelidade por Lord Henry Wotton

Meu caro amigo, só os deveras superficiais é que amam uma vez na vida. Ao que eles chamam a sua lealdade e a sua fidelidade chamo eu ou a letargia do costume ou a sua falta de imaginação. A fidelidade é para a vida emocional o que a coerência é para a vida intelectual - uma confissão de impotência.
A fidelidade! hei-de analisá-la uma dia. Existe nela a paixão da propriedade. Há muitas coisas que nós atiraríamos fora se não fosse o medo de que os outros as apanhassem... 

Oscar Wilde, O Retrato de Dorian Gray





A loucura, longe de ser uma anomalia, é a condição normal humana. Não ter consciência dela, e ela não ser grande, é ser homem normal. Não ter consciência dela e ela ser grande, é ser louco. Ter consciência dela e ela ser pequena é ser desiludido. Ter consciência dela e ela ser grande é ser génio”.


Fernando Pessoa





Ver a verdade não é possuir a verdade. Ver a tristeza é possuir a tristeza. Só a reconhecemos porque temos espaço disponível para a sustentar e porque já fomos tristes, já fomos felizes, já fomos contentes, já fomos e sentimos. Já agimos em função desses estados e sabemos que para conseguirmos expulsá-los temos que os reconhecer.



in Zapping Sobre As Madrugadas Idênticas, Eugénia Brito, edição de autor, 2011

Prémio Literário Cidade de Almada 2010



Conto até cem e, se não chegares antes dos cem, vou-me embora. Não chegaste antes dos cem. Conto de cem a um e, se não chegares antes do um, vou-me embora. Não chegaste antes do um. Conto dez automóveis pretos e, se não chegares antes dos dez automóveis pretos, vou-me embora. Não chegaste antes dos dez automóveis pretos. Nem antes dos quinze taxis vazios. Nem antes dos sete homens carecas. Nem antes das nove mulheres loiras. Nem antes das quatro ambulâncias. Nem sequer antes dos três corcundas e, entretanto, começou a chover.

António Lobo Antunes





A estrada não traz ninguém,...a única coisa que acontece é a consecutiva mudança de paisagem...diz que são miragens, frutos do desejo...Por isso ele queria mais uma vez partir, tentar descobrir nem sabia o quê...


Mia Couto in "Terra Sonâmbula"




Tentei muitas vezes criar raízes, mas as asas sempre me impediram."

Ramón Eder


Não digas nada, dá-me só a mão. Palavra de honra que não é preciso dizer nada, a mão chega. Parece-te estranho que a mão chegue, não é, mas chega. Se calhar sou uma pessoa carente. Se calhar nem sequer sou carente, sou só parvo."


António Lobo Antunes







"Recordava sobretudo o perfume da terra quando chovia. Vendo a chuva escorrendo me perguntava: Como sabemos que esse cheiro é de terra e não de céu?"


Mia Couto

No livro "A varanda do Frangipani"




Por te falar eu te assustarei e te perderei? Mas se eu não falar eu me perderei, e por me perder eu te perderia.


Clarice Lispector 



As paixões arrebatadas são como os vinhos de melhores castas: primeiro alegram, depois embriagam, no fim azedam'


(Mário Zambujal)




Para esquecer uma pessoa não há vias rápidas, não há suplentes, não há calmantes, ilhas e viagens, livros de poesia, copos ou amigos.

Só há lembrança, dor e lentidão, com intervalos no meio para retomar o fôlego.


Miguel Esteves Cardoso




É precisamente essa fraqueza o centro desta história. Sobre o poder daquelas pessoas que nos prendem com um olhar, tantas vezes indiferente, mas que prendem e enfraquecem. Que nos fazem dizer maravilhas de um arroz de cabidela (quando o detestam!) só para garantir uma harmonia tola e desejada, às vezes, nem se sabendo bem qual ao certo.

 Javier Marías in Os Enamoramentos