Saturday, 2 September 2017

Conchas da praia? Quem mais podia tê-las na campa, senão tu?

Encontrei-te quase “despida”. Um raminho de “sempre-vivas”, outro de gerberas, dois pezinhos de rosas brancas envoltos em papel de prata… e as conchas. Foram lá deixadas por quem te conhecia a paixão pelo mar. Continuarás assim a ouvi-lo. Das profundezas da terra, ouvirás as profundezas do mar e continuarás a saber pelo mar as notícias de um mundo que nunca quis saber notícias tuas.
Deixei a minha mão desenhada sobre a terra. Quis que soubesses que eu estava aí. Quis que me sentisses, como quando nos abraçávamos antes do café e das gargalhadas. Esse coração que hás-de ver desenhado sobre a campa, fui também eu que o deixei. É um coração como o teu. Não bate mas guarda memórias. São sempre as memórias que arrastam as despedidas e quanto maiores são as memórias mais tempo leva a dizer adeus. É preciso antes disso enumerar os pátios e os terraços e todos os palcos da nossa amizade. É preciso lembrar a tua voz que apagava todos os silêncios e todas as raízes que me lançaste para que eu crescesse e me multiplicasse em tantas ideias e sonhos como os que nunca desististe de sonhar. Se eu pudesse trazia-te de volta à vida porque neste instante em que estás morta sabes infinitamente mais do que eu. Eras uma mulher tão especial! Tão viva! Preciso de me arrastar na despedida porque não me avisaste antes que ias partir… Precisarei agora de olhar todas as estrelas do céu e perscrutar cada luar que pousar à noite para saber onde tu estás. Hei-de ver o desfilar dos anos pela pequena brecha dos teus olhos porque parte de mim olha o mundo como tu olhavas.
Não te levei flores. Hei-de levar-te violetas, porque sei que ao levá-las estarei a arrastar a despedida. E depois disso hei-de levar-te as tulipas que dormirão contigo. O nosso adeus há-de ser uma concha longe, longe da maré. Há-de ser a concha na tua campa, a concha que jamais será carregada pela água, jamais sucumbirá à força do mar.
Sabes, que acredito em Deus, como tu acreditas no holograma da lua e no teu confinamento. Espero que estejas errada. Quero-te livre agora, pelo menos agora, já que o corpo não te deixou sê-lo em vida. Quero que saias de onde tu estás e vás ver o voo dos condores na Cordilheira dos Andes, as linhas de Nazca no Perú, as Pirâmides de Tikal e depois as de Gizé, os gigantes da Ilha da Páscoa, os astronautas da Amazónia…. Acredito que o universo é eterno, mas também o são os sentimentos e os teus amores não morreram só porque tu morreste…
Hei-de levar-te violetas porque sei que ao levá-las estarei a arrastar a despedida. A tua voz há de vir de longe como o som do mar de dentro de um búzio e então eu saberei que ainda não te perdi porque nunca perdemos o que realmente importa.
Há muito que o encanto do mundo não surte em mim qualquer efeito. Lamento. Sei que me querias mais garreada a este chão, mas a terra não me é sedutora o quanto baste. Arredo-me, tanto quanto possível do ruído que a humanidade em desassossego provoca e mantenho-me quieta, à escuta do silêncio, compreendendo o silêncio e todos os segredos que só o silêncio revela. Num desses silêncios, eu sei, ouvirei a tua voz e depois sim, o mundo voltará, pelo menos, a fazer sentido.

Foto de Ana Kandsmar.