Sunday, 20 March 2016

Genesis

Ontem fui ver a minha mãe. É assim que tudo começa. 
Sou eu e a minha mãe. 
Ela num leito de dor e fluidos que lhe escorrem pela boca do corpo. Eu a contorcer-me num espaço exíguo, húmido, escuro como uma gruta cavernosa onde a luz do sol se faz longínqua. 
Ela a gemer e a cerrar os dentes, eu a abrir caminho até à luz, os meus ossos apertados e a carne magoada. Por fim, o alívio. 
A mãe desmaia caindo num repouso inconsciente enquanto eu berro cá fora aturdida pela claridade e pelo frio, pelos sons e pelas mãos que me tocam. Mãos que eu não conheço. A mãe também não me conhece. Continua no seu sono profundo e não quer saber de mim. Crescemos por fim, as duas muito juntas, ela cada vez mais mulher. Eu, cada vez menos criança. Ambas vinculadas a um pacto: Uma obrigação mútua de nos aceitarmos nas diferenças, suportarmos nos conflitos, de nos aprendermos na viagem que empreendemos, de nos amarmos em todos os momentos, mesmo naqueles em que o amor nos mingua, tolhendo-se no gelo que nos corta o coração. 

Ontem fui ver a minha mãe. Houve um tempo, há muitos anos, que eu a via como uma louca, sem brilho nem brio, desgastada pela vida, em constante desequilíbrio. Não me lembro de alguma vez a ter olhado como se olha um farol ou uma torre. Às vezes odiava-a silenciosamente. Outras amava-a mesmo assim. 

Quando depois da berraria por tudo e por coisa nenhuma, se sentava num canto a soluçar, dava-me pena. Mas os gestos, aqueles gestos que afagam, beijam e abraçam o outro como se o outro fosse uma extensão de nós mesmos eram gestos proibidos, despropositados, infantis demais para uma mulher adulta como a minha mãe. Restava-me então a comiseração mesclada com a incompreensão, às vezes a intolerância, outras o descaso. Via-a infeliz, consumida pelos rios de solidão que lhe sulcavam a vida. Ainda hoje a minha mãe é um desnorte. É-me por isso difícil ir ao seu encontro. 
No meio da sua tristeza infinda, prostra-se diante do seu muro particular de lamentações, o seu mundo interior revoltoso, desalumiado, emperdernido. Vejo-a assim como um produto inacabado. Uma boneca de porcelana que na linha de montagem saltou procedimentos de fabrico e saiu para o embalamento apenas com um olho, meio pulmão, um coração distorcido, uma mente defeituosa. 

Nunca me atrevi a perguntar-lhe se algum dia teve sonhos. Quais eram? Acredito sinceramente que nunca os teve ou se os teve, tê-los-á deixado morrer na penumbra de um cotidiano triste e enfadonho. Terão morrido ainda em estado embrionário, pequeninos, enfezados . 
Ao longo dos anos na soma de agruras e amarguras a minha mãe seguiu os passos dos seus sonhos e também ela mirrou. Hoje uma mulher pequenina, como o são todas as mulheres que silenciaram dentro de si os seus desejos, a mãe cortou definitivamente as asas que a custo a levaram de um dia ao outro. Não mais suportou o peso das pedras que pendiam das suas penas e a obrigavam a voos rasteiros. Ansiou libertar-se de tão limitadores pendentes e de um só golpe decepou-se. 

A mãe que nunca conheceu a vertigem de planar nas alturas, que nunca viveu as alegrias das perfeitas aterrissagens, fez jus à sua condição de mulher térrea e rastejante e hoje quando a encontro, lá está ela a escarafunchar as migalhas que a vida lhe deu, satisfeita por graças a elas, nunca ter sentido fome. Eu, que hoje também sou mãe,tenho medo de me tornar como ela.