Esta manhã entrei na igreja. Já há muito que não entrava na casa de Deus. É frequente passar-lhe à porta, mas apesar de a encontrar aberta, não entro. Poderia de quando em vez, gritar “Ó da casa!” e esperar que o vulto anafado do Senhor se aproximasse arrastando os pés sobre o soalho lustroso onde se ajoelham as beatas zelosas, tementes à sua ira e envergonhadas dos seus pecados. Todavia, avanço. Às vezes até acelerando o passo, confesso, não vá o Criador espreitar pela fresta de uma janela, a da sacristia que costuma estar entreaberta, e chamar-me para dois dedos de conversa. “ Então rapariga, que tens feito?” Emudecia. A uma pergunta dessa natureza, não há nada a dizer. Tenho feito o que toda a gente faz. Peco. Peco por defeito e por feitio, por determinação e teimosia, por tudo e por nada. Peco. Ainda agora quando me benzi em frente do altar, olhei a figura de Cristo na cruz e pequei. “ Era um homem bonito este Jesus”. Pequei. Achei-o belo, mesmo assim abatido e de ar sofredor, o rosto atraente, de olhos doces, mas profundamente sedutores e pensei que se tivesse sido eu no lugar de Maria Madalena me teria apaixonado perdidamente por Ele. Em menos de nada ali estava eu a imaginá-los juntos, a Ele e à Madalena, fazendo amor num qualquer barco de pescador, no meio de tainhas saltitantes implorando para serem devolvidas ao mar da Galileia, no Monte das Oliveiras enquanto os apóstolos dormissem, ou até no interior do Sinédrio, mal as portas se fechassem e os rabinos voltassem a suas casas após os sermões. Jesus, como o pintam, era um homem bonito. É um facto. Madalena, suponho, também não seria nada de deitar fora.
Nestes dois dedos de conversa com o Senhor Deus, eu teria que pedir-lhe perdão por mais este deslize. “ Como ousas atribuir ao meu filho uma conotação sexual?” Deus perguntaria, claro. Ou então não. Talvez Ele entrasse na minha mente, antes mesmo de eu lhe responder. Talvez nem fizesse a pergunta. Deus, de tão perspicaz que é, e conhecendo bem as suas criaturas em geral, e esta criatura que hoje lhe entrou pela casa dentro em particular, sabe muito bem que a razão de eu atribuir ao seu filho um sex appeal que me deporta para o plano dos blasfemos e sacrílegos, tem a ver com o facto de o achar incrivelmente parecido com o M quando ficava 1 mês sem desfazer a barba. Sabendo disso, perdoar-me-ia a intrepidez. Espero. Pelo sim pelo não, e antes que o escriba celestial some mais uma falta ao meu já extenso registo de episódios indesculpáveis, rezo um Pai Nosso e uma Avé Maria. Olho de esguelha para o Cristo, tento distrair-me com os vitrais, a imagem imaculada de Nossa Senhora, a caixa dourada das hóstias sobre o altar, mas é a santa barba do redentor que me traz outra vez a imagem do M, naqueles dias de inverno em que vestia grossas camisolas de lã e se recusava a cortar o extenso tufo de pêlos que lhe tapavam metade do rosto. Imediatamente pensei: “Tantas coisas que podias fazer comigo e só queres fazer-me falta.” Pequei de novo. Foi mais forte do que eu.