Sunday, 20 March 2016

Se eu fosse eu.

Li um texto da Clarice Lispector que começa mais ou menos assim. Se eu fosse eu. 
A frase tocou-me. Profundamente.

 Há muito que me pergunto quem seria eu, se fosse eu. 
Acho que cheguei à minha segunda fase dos porquês. A primeira, tive-a em criança. Nessa altura perguntava “ Porque é que o sol é quente, as formigas andam em carreirinhos, o cheiro da terra molhada é doce, o que são pecados, onde mora Deus, a mãe me diz não. Porque é que me dizes não, mãe? 
Hoje eu sei que a mãe me dizia não para que eu não fosse eu. Aprendi então a não ser eu. Sou o que faço, sou os meus filhos, os meus pais, o meu chefe, os meus colegas de trabalho. Sou os meus amigos e os meus inimigos. 
Mas…e se eu fosse eu? A vida começa todos os dias e todos os dias, mal o sol nascesse, faria caminhadas matinais à beira-mar. E nessa altura, saberia que cada grão de areia a afundar-se em baixo dos meus pés é uma estrela no céu: Um grão de areia acima da minha cabeça. E então eu teria noção da minha pequenez e finitude.
Viajaria mais. Dissiparia o medo de me perder nas estradas do mundo e tornar-me-ia numa andarilha.
Escreveria mais. Não perderia 1 segundo do meu tempo com o que não me faz feliz e dedicá-lo-ia apenas ao que me faz rir a alma. 
Arranjaria uma casinha de aldeia, daquelas térreas com um grande quintal e enchê-lo-ia de cães, gatos, pequenos ciprestes e trepadeiras nos muros. Forraria as paredes com livros e exporia sobre os móveis as conchas de todas as praias do mundo. 
Faria tatuagens no meu corpo. Andaria com um bindi no meio da testa. Descalça. Andaria mais vezes descalça. 
Veria sempre o pôr-do-sol. Porque em cada dia encontraria um novo encanto no poente.
Teria menos flores nas jarras e mais no jardim. 
Poria um aquário no lugar da televisão. Ele lembrar-me-ia da profundidade da vida e livrar-me-ia do superficial.
Pelo menos uma vez experimentaria a sensação única de planar num parapente. E então eu saberia que as aves são de todos os seres da Terra, os preferidos do Criador. Porque Ele lhes deu a elas aquilo que os homens mais ambicionam: Liberdade. 
Escolheria uma praia privada e faria nudismo. E então eu saberia que a roupa que me veste é apenas um acessório. 
Daria mais do meu tempo aos velhos e às crianças. Para então compreender que atravesso agora a ponte entre eles. 
Apaixonar-me-ia mais. Por tudo o que valesse o meu amor. Também por mim, que tantas vezes me desmereço.
Seria menos polida. Gritaria a uns “Vai-te foder”, com a mesma satisfação com que digo a outros “Gosto tanto de ti”. Sem me sentir culpada. Acobardada. Sem medo de ferir o outro, de represálias, de perder um amigo, um namorado, um emprego. 
O medo, esse fantasma manipulador que me paralisa, seria então um pequeno espectro. Uma sombra passageira a esbater-se na firmeza da minha coragem. 
“Vai-te Foder!” Di-lo-ia com a minha dicção perfeita, alto e bom som a quem merecesse ouvi-lo. Preocupar-me-ia menos com as carências e confiaria mais no futuro. 
Confiaria mais em mim. Saberia então que Ser e Ter são coisas muito diferentes e se a primeira é o que a vida me dá, a segunda é o que ela me tira.