Sunday 20 March 2016

Filhos de um Deus Maior

Comprei o "Pai Nosso" da Clara Ferreira Alves. Ando a lê-lo com entusiasmo e devoção estranha. O meu fascínio pelo Médio Oriente ainda hoje é um mistério para mim. Islamismos à parte, construo do Irão uma visão romântica, bela. Fico feliz quando me dizem que me pareço com as mulheres iranianas, embora saiba que é mentira, sou 100% europeia. Ok…talvez como a minha mãe, eu guarde alguns traços árabes. Isso explicará a minha atracção por homens sarracenos? As peles morenas, tisnadas do sol, os olhos grandes, escuros e expressivos chamam-me à terra, logo a mim que sou tão céu. Sou toda céu. Uma lunática, por assim dizer. Custa-me aterrar por aqui. Há qualquer coisa na lei da gravidade que é anti- natura no meu corpo. Ao invés de me obrigar a ganhar raízes, impele-me a criar asas. E é por isso que não raramente voo para longe, atravesso as nuvens de Bagdade, flutuo sobre Ancara, meto a fundo até Istambul, parto o coração em Damasco, cruzo os papagaios de papel dos meninos de Cabul. Até que por fim em Teerão, descanso. Um descanso reparador, terno, como se braços protectores me acolhessem finalmente em casa. Há países que eu amo como se fossem meus. É também o caso da Índia. Amo a Índia. Amo-a com um amor antigo, indissolúvel, incompreensível. Se eu, em silêncio fechar os olhos e inspirar profundamente, sinto chegar-me às narinas os 1001 perfumes indianos. Dos mercados como o Chandni Chowk, em Délhi, chegam-me apimentados e doces, odores misturados a suores, incensos, especiarias, perfumes baratos, os charutos dos turistas ingleses, óleos queimados de viaturas que se atravessam, atropelam, chocam, seguem como se a vida fosse só ali um bocadinho mais à frente. O fedor do Ganges, lenha queimada, corpos queimados, animais de rua, masalas, semolinas, chapati… Consigo até ouvir os mantras, os mesmos que se entoam na orla do rio sagrado, de frente para o Kashi-Vishvanatha Mandir, o templo de Shiva. Uns fazem eco ao redor das piras e levam a Yama, kala ou qualquer outro Deus que dedica a eternidade aos mortos humanos, as suas imperfeitas almas. Outros elevam as suas vozes a Parvati, a Ganesh, a Shiva: “Sarva Mangala Mangalye Shive Sarvartha Sadhike Tryambake Gauri Narayani Namosture.” Repete-se 9 vezes para se ter sorte no amor. Casais felizes para sempre só os há, se matraqueiam afinadamente as palavras mágicas. E este é o fascínio que a índia exerce sobre mim. De Calcutá a Goa; do Ganjes ao Yamuna; dos arrozais ao Taj Mahal; das monções ao bafo quente que me beija o rosto, um beijo do diabo, húmido, peganhento; do crepitar do carvão nos fogareiros acesos em passeios tortos, ao restolhar dos saris que secam nas cordas, do silêncio no interior dos templos, ao desassossego dos meninos de rua, as mãos estendidas pedindo moedas, pedindo pão, pedindo água, pedindo colo…a Índia é deslumbrante.