Wednesday 25 January 2017

Silêncio

Nesta peregrinação de dúvidas e torturas, Silêncio recupera um passado português quase esquecido. Nem sempre a árvore da fé consegue ramificar.

Foto de Ana Kandsmar.
Espero que não se imponham limites ao número de estrelas a dar a Andrew Garfield. Ou a Martin Scorsese. “Silêncio” é muito provavelmente a primeira maravilha da 7ª Arte em 2017. 
Saio do cinema com a alma partida. Sempre me interessei por estas incursões religiosas.
O que é que um homem é capaz de fazer por um Deus invisível? Matar e deixar-se morrer? Certamente. Ou pelo menos, no que à cristandade diz respeito já foi assim em tempos. 
Não deixam saudades, esses tempos. Mas o que se pode tirar do filme de Scorsese é muito mais do que uma cegueira religiosa. Subsistem em toda a película, dois momentos distintos: a fé e a dúvida. 
Para muitos católicos terá ganho a dúvida, pois, a história centra-se nos apóstatas Ferreira e Rodrigues. Quanto a mim, que não sou católica, ganhou a Fé. Um e outro, especialmente, Rodrigues, continuaram a acreditar e morreram a acreditar. 
Aparece-nos ainda Kichijiro, o homem moderno do séc. XVII. O homem que quer ser salvo de todas as formas em que é possível ser-se salvo. No corpo e no espírito. Não quer perder a Terra e ainda assim ganhar o céu. Tal como todos nós, sobreviventes do Sec.XXI, que queremos a salvação de tudo o que nos for possível salvar, Kichijiro também quer todas as salvações. 
Reparem em quantas vezes trai a si mesmo e quer confessá-lo. Julga-se obviamente um traidor de Deus, da fé que diz sentir, mas trai-se apenas a si próprio, de cada vez que permite que outros o verguem ao medo de seguir o seu próprio caminho. 
Não consigo deixar de pensar que temos todos, uns mais do que outros- e queira Deus que eu seja uma das que menos- um pouco de Kichijiro. Vejo por aí gente de convicções tão fracas que por muito menos, pisariam sem hesitações os seus próprios pulmões, quanto mais uma imagem de Cristo. Esmagá-los-iam sem pestanejar, até ao sufoco. 
E é por isto que chego a admirar a frieza nipónica. A frieza que é cínica e amável como só a frieza consegue ser. Se Inoue (o inquisidor) fosse um homem apaixonado, teria sido forçosamente cruel. Assim, não o foi. Permitiu a Kichijiro enganar-se a si próprio de todas as vezes que foi confrontado com a sua essência, a profundidade dos seus pensamentos, e eis que sendo a profundidade rasa, escolheu agradar ao seu carrasco, para mais uma vez pedir perdão a si próprio. 
Vejo isto todos os dias. Nas conversas de café, nos murais do Facebook, nos gabinetes dos legisladores, no palanque dos governantes. Que os Kichijiros deste mundo, possam também enganar-se e traír-se. Possam também procurar a absolvição. 
Não a encontrarão, como Kichijiro não encontrou.