Sunday 20 November 2016

Confira aqui alguns excertos d'O Livro de Jade do Céu

                 
«Não receies as Gárgulas. Ao invés disso, entra. Atravessa o recinto que te leva à beleza das açucenas. Num dia em que não haja oração nem o burburinho das vozes que ressoam os cânticos, cruza o arregaço das cortinas que compõe o arco e contempla o céu das oito pétalas. No alto hás-de ver um Anjo. Um Anjo que segura o que não guarda. Colocar-te-ás no lugar dele. E eis que, estando tu no lugar do anjo, verás o que ele vê e guardarás e que ele guarda».

"Recuo à minha infância. Pronunciar aquele nome, Júlia, a minha tia Júlia, era voltar a sentir o cheiro do pão-de-ló acabado de cozer, o barulho repetitivo do pedal da máquina de costura, o sabor das fatias do pão caseiro com mel, o barulho do granizo a cair sobre o telhado de zinco da adega, as manhãs dos primeiros dias de Dezembro passadas a apanhar musgo nas várzeas que na Primavera se transformavam em pasto para as ovelhas. E os olhos doces. Os olhos doces da minha tia Júlia que pareciam sempre transbordar de amor e de bondade."



"Há anos que não vou ao Iraque. É uma loucura ir ao Iraque. Aquele país é um deserto retalhado por dois rios onde corre mais sangue que água. Ninguém quer ir ao Iraque. A menos que o faça por dinheiro. Vão os senhores da guerra, os heróis da guerra, os lunáticos da guerra, e os curiosos pela guerra. Os repórteres. Os contadores de histórias que nunca dizem a verdade. Contam apenas estórias. Eu sou arqueóloga. Não conto estórias. Conto a história. Já fui ao Iraque. Para encontrar vestígios do tempo em que o Iraque vivia em paz."


"A chegada à cidade de pedra é, tal como previsto, um regresso ao passado. Já experimentei a forte sensação da nostalgia em muitos lugares do mundo, e Petra não é diferente. Pelo contrário. A cidade arrancada das rochas parece ter o condão de me extasiar, de me deixar completamente rendida à beleza, ao misticismo, ao corredor do tempo que se abre perante os meus olhos, impiedoso e cruel. As palavras do velho Yeshua ressoam na minha mente e trazem-me de novo a imagem de Al-Uzza, humilhada, expropriada da terra, das gentes e da vida que um dia lhe pertenceram. Na terra que já foi minha, olhando, sentindo e absorvendo os aromas, crio a ilusão de que nunca antes soube da existência deste lugar."

"Os homens sonham secretamente com os apocalipses. Os bíblicos e os cinematográficos. O Day After que há-de vir carregado de novas possibilidades. Um Armagedom promissor, um desvio de rota que os leve a bater de frente com um pedregulho espacial ou que os conduza à entrada abrupta num buraco negro, de minhoca talvez, uma dobra no universo que os catapulte para os novos amanhãs tão diferentes de hoje. Secretamente desejam o fim. Invejam o jurássico e as eras glaciares. A hecatombe há-de salvá-los deles mesmos, qual arca a protege-los do dilúvio. A morte há-de salvá-los da vida."


"Kasbel murmura de novo qualquer coisa de ininteligível e o meu corpo gira no ar como se apanhado por um remoinho. Depois deixa-me cair. Por breves segundos, sou disparada para fora da couraça física que acolhe Eluaryne e vejo-a a ser lançada no chão. A violência do impacto suga-me de novo para dentro do corpo que é projectado a vários metros de distância. Sinto um ardor bárbaro no meu rosto quando ele raspa o solo."



“-É neste ponto que nos reunimos a Jonas e ao seu complexo, não é Michel? Jonas é alguém que tem asas para voar, que tem um desejo de espaço, um desejo de infinito, mas não tem coragem. Ele apara as suas asas, para continuar adaptado à sociedade na qual se encontra e que o proíbe de ir ao outro, de ir ao inimigo, de ir ao diferente, limitando-se apenas à dor da sua perda.”



“-Nero elevou-se aos píncaros da criatividade depois de ter posto Roma a arder! É verdade, ainda te lembras daquelas maravilhosas labaredas que arrasaram Cartago? Fui eu! Hiroxima e Nagasaki? Também fui eu! Tal como fui eu o criador das máfias, de todos os tipos de tráfico, da toxicodependência, da prostituição, violação, pedofilia. O Holocausto! Auschwitz! Ah, Auschwitz! Que maravilha da criação! Antes disso, o massacre de São Bartolomeu ou o genocídio arménio haviam sido brincadeiras de crianças! Adorei cada uma das minhas criações. A lepra, a cólera, a sida, os cigarros, as discotecas, o sexo anal, o adultério, os assassínios, as marés negras, os assaltos à mão armada, a indústria farmacêutica, o Heavy Metal! Mas Auschwitz... Ah, que saudades que eu tenho de Auschwitz!”

"Os meus olhos não se desviam do Mensageiro e avanço a cada palavra dele para o interior das minhas próprias memórias. Da teia do tempo que me separa daqueles acontecimentos trágicos, surgem ténues recordações. A princípio esmorecidas, embaciadas, como um espelho envolto em vapor. Imagens confusas como se emparedadas por um nevoeiro denso, que a pouco-e-pouco, se tornam claras e reais. O coração que me bate no peito acompanha-as, identifica-as e agita-se, galgando num pulsar crescente. Aquele corpo deitado no chão frio da cripta fora o meu. Foram minhas as roupas rasgadas, atiradas aos cantos escuros do aposento. Foram meus os seios desnudos e violentados, a carne suja e rasgada, a dor, a humilhação e por fim a perda."



"Os olhos do arcanjo passeiam pela divisão, apreciam o sofá largo, em forma de L e saltam deslumbrados para as serigrafias a preto e branco nas paredes. Todas elas retractam momentos únicos na história. Uma mulher que atira um cravo à espingarda de um soldado durante a revolução de Abril; um rapazinho mal vestido e sujo, perdido numa das ruas de Berlim, destruída pela guerra; o genial mestre do suspense, Hitchcock, fumando o seu charuto enquanto uma espiral de fumo branco parece querer evadir-se da moldura e ainda uma outra, cuja concentração de muçulmanos em plena oração em Meca, impressiona até o mais acérrimo dos ateus."




"Emudecidos perante o cenário deslumbrante que se desenha em frente dos olhos, os celestiais não se dão conta de que a minha transformação está prestes a começar. Continuo a ser o corpo humano que permanece ao lado deles, mas já não falta muito para que Eluaryne ocupe o meu lugar. Com calma e precisão, vou colocando por ordem cada uma das páginas do Livro de Jade do Céu. As minhas mãos movem-se devagar como se manuseasse um bisturi numa mesa de operações. Por vezes, a luz ténue da lua, revela fugazmente o esplendor da sua forma. Quando os reflexos dourados da nova energia se avolumam nas extremidades do meu corpo, olho para as minhas mãos e vejo-as cristalinas e brilhantes."

"O rosto do meu raptor é belo e fleumático. Os olhos daquele ser, forte e imponente, desviam-se dos meus para fixar Miguel e Mendel que continuam no chão. Com um desdenhoso estalar de dedos, põe fim ao meu grito e aperta-me contra ele. Encosta a boca no meu ouvido e sussurra num linguajar que eu não entendo. Sinto a minha pulsação acelerar. Vejo Miguel de espada em riste. A Justiceira brilha no escuro na direcção de Kasbel que se esquiva, colocando-se na minha retaguarda."
"Ele solta uma gargalhada. Um som metálico cortante, que me gela até aos ossos. A minha transformação ainda não está completa, mas a dor no meu corpo selado pelos braços do Arcanjo Negro, é um sinal de que fiquei num limbo. A meio de um caminho em que Eluaryne e o corpo de Luana estão perfeitamente fundidos, sem que haja qualquer hipótese de fuga para uma ou para outra. Assustada, a centenas de metros acima das cabeças de Miguel e Mendel, esvazio a mente na esperança de dar espaço a Eluaryne para que ela se escape para Kollob. Mentalmente, recito o Pai Nosso para deixar a minha mente em branco."

Ana Kandsmar in A Guardiã, O Livro de Jade do Céu