Sunday, 30 October 2016

Macumbas, Milongas e Mandingas



Eu, bruxa me confesso. 
Entro-te pela noite adentro e lanço-te mezinhas, rezinhas, avé marias e pais nossos, rogai por nós pecadores, abracadabra e transformo-me numa cabra. 
Eu, feiticeira me declaro. Acendo velas, queimo incensos, soletro mantras, enfeitiço-te, simsalabim e quero-te só para mim. Se te lanço feitiços e macumbas, milongas e mandingas, com os amuletos e talismãs que enrodilho no pescoço, se te rezo ao pai de santo é porque te encomendo os serviços de amor e prazer que há muito não me forneces. 
Por isso, baixa-te para que eu te banhe em águas turvas, e te segregue os fluidos biliosos que depois te dou a beber, para entrar à força dentro de ti. Não o faço por maldade, acredita. Faço-o somente para que não continues a despistar o branco das paredes da casa com o negro do nosso silêncio. 
Quero-te longe dessa outra que te circunda com trejeitos ordinários e as raízes escuras que fogem ao descolorante barato. 
Quero-te fora dessa cama onde te deitas à larga no vazio do meu corpo e longe, bem longe desse interesse que te consome e que te não deixa sentir livre, de pazes feitas com o que escolheste. 
Não sei o que sabe ela dos rituais mágicos que nos levam a dançar nos bosques em noites de lua cheia, nem tão pouco se te deita em círculos adornados com pentagramas e cera de abelhas a escorrer-te pelos cantos da boca. Mas tenho a certeza que não te viciou no sexo que queima de dentro para fora, nem no perfume de temperos exóticos. 
Ela bem que poderia zoar-te aos ouvidos rezas e encantamentos ou até mesmo ensaiar nas tuas costas sacrifícios e sortilégios, coser-te a boca com o veneno de promessas ou beijos peçonhentos. Mas de nada lhe serve entrar nas curvas ocultas das tuas artérias, nem tão pouco lhe vale aflorar-te a pele nos capilares. 
É verdade que essa outra com quem te deitas agora, te deixou indiferente a esta dor de silício que se me crava na carne e que, com um vudu de muitas loas, fez de ti um morto-vivo e parou-te o coração que dantes batia por mim. 
Bem sei que não acreditas nessas coisas, que és de estudos e não de crenças, racionalista, epistemológico, matemático. Mas acredita que me basta querer-te e mal o diabo esfregue um olho faço-te correr por baixo de escadas, enquanto eu durmo com gatos pretos e me vejo quebrada em espelhos partidos. 
 Por agora espreito-te na bola de cristal e encontro-te no livro das sombras. Mas atenta bem no que te digo: Basta que eu queira. Basta que a minha vontade cresça como o musgo nos telhados velhos para que voltes a cair nas teias esculpidas do meu corpo. 
Tão certo beberás do meu cálice, como voltará a ser minha a tua varinha. Mágica. A que tens entre-pernas. Nunca te disse, mas sim, sou bruxa, sou maga, sacerdotiza, deusa de um templo pagão, conjuro-te, encanto-te e prendo-te (n)o coração.


Saturday, 22 October 2016

Insistir, persistir e nunca desistir.


Reescrever, reeditar, aguardar pacientemente a elaboração das paginações, das capas, os textos finais, e todos os pormenores que nos fazem acreditar piamente que "É isto!", que o trabalho está bem feito, que nos orgulhamos do que fizemos e do que fizeram todos aqueles que apostaram em nós e trabalharam connosco até ao surgimento do resultado final, tudo isto é parte de um caminho que só entende quem o faz. 

Eu sou hoje novamente uma criança em véspera de Natal. Eu sou hoje novamente a mãe babada de um filho renascido. Em breve tê-lo-ei nas minhas mãos. Em breve, cada um de vocês poderá tê-lo na vossa mão.
Quero que fique bem claro: Escrevo apenas, porque se não o fizesse não seria eu. O meu ADN está impregnado de textos, histórias e é-me de todo impossível não as deixar sair pelas pontas dos meus dedos. Se a vida não me tivesse permitido aprender a escrever, teria hoje de as contar, talvez à volta de uma fogueira. 
Sei que a edição anterior não foi um sucesso de vendas. Sei que muito provavelmente também esta não o será. Há demasiados factores a ter em conta para que um livro se venda e o primeiro de todos é o meu nome. Não sou ninguém. Mas sou, e sou-o convictamente, uma lutadora nata que acarinha cada um dos seus sonhos e cuida para que as adversidades da vida não os mate. 
Conto convosco, não para me levarem em ombros, mas para me darem o beneficio da dúvida. Escrevi esta história com todo o amor de que fui capaz. Reescrevi-a redobrando a intensidade desse amor. Coloquei o meu mundo interior aqui. É aqui que eu vivo enquanto muitos de vocês dormem e eu fico sozinha com um teclado de computador. Aqui, neste mundo que transpus para a história da Luana, só há possibilidades. Há um mundo que se renova e revela. Não é uma verdade. É, como disse, possibilidade. Que sejam vocês os justos avaliadores da beleza desta possibilidade, e se gostarem dela, lutem para a tornar real.
Lá para o fim de Novembro, a Guardiã bate de novo as asas. Espero que a acompanhem neste novo voo.

Especial gratidão para a minha nova editora Helena Mineiro da Editora Mahatma que acreditou. :)

Tuesday, 18 October 2016

A Guardiã está de volta!

Para a reedição do Livro de Jade do Céu, decidi honrar o homem (o meu avô) que me deu um apelido que raramente uso, "Gaspar" e remetê-lo à sua origem iraniana, "Kandsmar".
 Assim, a história da Guardiã voltará a ser comercializada a partir do próximo mês de Novembro com a assinatura Ana Kandsmar. Neste momento, dão-se os últimos retoques na nova capa e paginação antes de seguir para a gráfica.
Uma estória reescrita, agora contada na 1ª pessoa. Espero que ela cumpra o objectivo de vos fazer sonhar, mas acima de tudo questionar, tal como nos diz o autor do prefácio, Luis Miguel Rocha, sobre o ínfimo conhecimento que temos de quem somos, conhecimento que não preenche afinal o espaço que ocupa um átomo.

Deixo-vos aqui um excerto.

"À minha frente estão duas gavetas onde só guardo tesouros. Coisas de muito valor. Uma tem pacotinhos de supari, masala tea bags, caixas de incenso, sabonetes de açafrão e sândalo, um sari lindo, rendado, fiadas de flores de jasmim já secas e esboroadas e ainda um cd de Ravi Shankar. Um cd que quando toca, solta um som tão mágico e envolvente como só uma cítara pode ter. Um dia, eu hei-de morrer e a Índia, continuará a ser a Índia. Com ou sem dejetos e cadáveres que boiam indiferentes ao choque dos turistas, o Ganges e o Yamuna, continuarão a ser os rios onde já molhei os meus pés.
Na outra gaveta tenho postais ilustrados, fotografias que eternizaram momentos irrepetíveis, e alguns textos que fui escrevendo, inspirada pelas paisagens e pessoas que emprestam a alma àqueles lugares. Ainda hoje guardo tudo com a convicção de que se a minha casa sofresse um incêndio, seriam estes pequenos (grandes) tesouros que eu tentaria salvar a todo o custo. Quando tenho saudades da Índia, enfio o nariz na gaveta e deixo-me inundar pelos cheiros dos mercados enquanto a cítara de Ravi Shankar enche a casa. Quando é a nostalgia de lugares tão belos e indiscritíveis, preciso de olhar as fotografias. Afronto-as para me relembrar dos pormenores. Vejo os minaretes em Istambul e ouço-os verter para fora as vozes afinadas dos muezins. Vejo a Via Dolorosa impregnada de peregrinos que se misturam com muçulmanos e judeus, aytolas e rabinos, crentes e ateus. É assim Jerusalém. Um enorme templo de onde os vendilhões nunca saíram. Vejo um aborígene de pele escamada pelo sol, que sopra um didgeridoo ecoando o som harmonioso pelo deserto australiano com as Olgas como pano de fundo. O cenário mágico das ilhas de Pazcuaro, as pirâmides de Tikal, as ruelas estreitas de Varanasi pontilhadas de santuários… E preciso das palavras. Quando lhes sinto a falta, leio nas frases que brotaram cruas dos meus silêncios, o maior amor do mundo, cristalizado, perene, imortal."

Ana kandsmar in A Guardiã- O Livro de Jade do Céu

Saturday, 15 October 2016

Das mil e uma razões para gostar de ti.


Um dia escreverei sobre cada uma delas. Sobre cada momento que tornas especial, entre o acordar e o regresso a casa, e tudo o que está de permeio, os teus olhinhos meigos a transbordar ternura e a alegria incontida com que me recebes quando abro a porta ao anoitecer ou me dás os bons dias. 


Pergunto-me se saberão, aqueles que seriam capazes de te abandonar em qualquer esquina, em qualquer pedaço de alcatrão, de quanto amor és capaz de sentir por quem não é sequer da tua espécie. Pergunto-me se alguma vez viram em olhos como os teus, a alma que também é como a deles parte do mesmo Criador e por essa razão, em algum momento das suas vidas lhes sentiram a ligação, a conexão divina. Se como eu, alguma vez tiveram a sorte de se sentirem enredados, envolvidos em nós de marinheiro com outros como tu.  Que latem como tu, que como tu correm pela casa atrás de uma bola, pulam de contentamento de cada vez que vão à rua,se deliciam com patés fedorentos...Como tu que rebolas sobre os meus lençóis depois do banho e te aninhas aquecido pelo meu corpo, sobre a manta que puxo para nos cobrir aos dois. 
Contemplei a tua alma no primeiro dia em que te vi. Brilhou nos teus olhinhos negros e conectou-me. Sentia-a dizer-me coisas que só o meu coração foi capaz de ouvir. Soube então que o teu lugar era comigo. 

Pergunto-me se saberão, aqueles que seriam capazes de te abandonar em qualquer esquina, em qualquer caminho de floresta, o que é comunicar com uma alma que se faz ouvir no coração. Pergunto-me se saberão, aqueles que seriam capazes de te maltratar, de te amarrar a um poste, prender-te a um metro de corrente, de quanto amor és capaz de entregar, assim, a troco de quase nada, apenas de um pouco de atenção, uma festa na cabeça, um prato de comida, um cobertor para te aqueceres. Pergunto-me se, em meio de tanto descaso, alguma vez cogitaram, ainda que apenas um segundo, do quanto é bom e libertador, permitirem-se amar e ser amados por criaturas tão diferentes e tão iguais. Pergunto-me se alguma vez imaginaram, que partilhar contigo a toalha de praia, um pedacinho da bola de Berlim, um passeio pelo parque, ou o lugar favorito do sofá, poderia torná-los melhores humanos. 
Nem todos sabem que Anjos como tu têm afinal essa missão, a missão de regar a semente do amor que se abriga no peito humano e que às vezes murcha, às vezes seca e tantas vezes morre. Creio que há cada vez mais quem saiba que és um anjo. E que os outros como tu também o são. E que se anjos como tu vivem vidas tão curtas, tal facto se deve a que somos muitos e além de sermos muitos, somos teimosos, e uma vida de cão não basta para ensinar a um homem a matemática do amor. Um cão já nasce a saber tudo sobre a soma dos afectos. O homem morre quase sempre sabendo apenas subtraí-los.

Wednesday, 12 October 2016

Sou de (uma) Direita muito torta.

Espantam-se alguns amigos com a petição agora a circular para que se ponham os olhos nos milhares de trabalhadores precários em Portugal. 
Espantam-se sobretudo aqueles que me conhecem bem e sabem que ando a anos-luz da estabilidade profissional (isso é o quê mesmo?) e que também ideologicamente defendo muitas vezes aquilo que parece a muitos, só defensável por partidos de Direita. Todavia, há que dize-lo, Direitas há muitas, e a minha é definitivamente uma Direita torta. Ou se quiserem, de uma Direita que também se revê em apêndices de Esquerda, se é que se pode dizer que essa Direita existe. 
Talvez seja afinal uma coisa muito minha olhar com desconfiança para multiculturalismos e abominar capitalismos, aplaudir a soberania dos Estados e invocar a cooperação entre eles, ter horror a touradas e condenar a IVG. 
Acho que mais do que ideologias politicas e partidárias, sou uma idealista pela Humanidade. Entendo que o Bem Comum se sobrepõe ao Bem Individual e contra-senso ou não, parece-me que é impossível ao Bem Comum existir se não passar primeiro pelo Bem Individual. Sigo a premissa de que indivíduos felizes fazem comunidades felizes. Comunidades felizes fazem nações felizes e nações felizes…bem, parece-me óbvio, fazem o mundo feliz.
 E já estão vocês a pensar que isso é utópico e para além do mais seria uma profunda chatice. Lá vêm os defensores da evolução pela dor, dizer que o sofrimento faz parte, e que, é com sangue, suor e lágrimas que nos fazemos à vida. A ideia, deixem-me que vos diga, não sendo descabida de todo está a ser muito bem aproveitada por quem de sangue, suor e lágrimas percebe népia. Esses são os que mais do que qualquer um de nós estão no topo da cadeia alimentar. Comem-nos a carne, sugam-nos o sangue e roem-nos os ossos. Até que de nós nada reste. 
Sem darmos conta, antes ainda da carne, consomem-nos a humanidade. O que faz de nós pessoas. Humanos. E ser humano é ter aquela coisa que formiga dentro da nossa alma e nos faz arredar os olhos do nosso prato meio vazio para o prato vazio do outro. Isso é a nossa chama. Caso não se tenham dado conta ainda, saibam que esses, no topo da cadeia alimentar, estão a apagá-la. 
Quando no início do Séc.XX se instituiu a Carta dos Direitos Humanos, foi precisamente, para que essa chama nunca se apagasse. Infelizmente, hoje ela tem o vigor da tímida chama de uma vela. Quando aceitamos que se perpetue o velho mercantilismo da vida, apagamo-la. 
Quando inventamos novas formas de a mercantilizar apagamo-la. 
Quando nos vergamos à indignidade, apagamo-la. 
Quando nos tornamos insensíveis à dor alheia, apagamo-la. 
Quando usamos e descartamos o outro, apagamo-la. 
E assim vamos, de apagão em apagão, sempre soprando numa luz cada vez mais ténue, até que ela se extinga.
Vamos a factos. Em Portugal, o número de nascimentos foi, em 2007 e a partir de 2009, sempre inferior ao número de óbitos. Desde 1960 que tal nunca tinha acontecido.
Apesar de em 2015 terem nascido mais 3 133 crianças que em 2014, a diferença entre o total de nascimentos e de óbitos correspondeu a -22 423, mantendo-se assim o saldo natural ininterruptamente negativo que se tem verificado ao longo dos últimos oito anos. 
Somos portanto mais do que um país de velhos. Somos um país de moribundos. E os que pelo meio, se encontram na idade activa são fodidos e mal pagos.
Contribui para isto a precariedade laboral. Criar famílias não se coaduna com incertezas, inseguranças e vidas no fio da navalha. 
Somos a base da pirâmide. Somos os consumidores que colocam a economia em movimento. Consumir, não se coaduna com incertezas, inseguranças e vidas no fio da navalha. 
Somos os migrantes. Procuramos fora da terra que nos pertence, o que em condições dignas, a nossa terra devia oferecer. Somos os que abandonam os seus idosos nos depósitos a que chamamos lares. Estar perto dos nossos ou termos condições para lhes aprouver as necessidades não se coaduna com incertezas, inseguranças e vidas no fio da navalha.
Em suma, longe dos capitalismos que só olham aos números, almejar um Estado Social que se encarregue verdadeiramente de dar a mão a quem já não tem força para levantar-se e impedir que continuemos a escalar perigosamente a montanha de desigualdades que começam na legislação laboral é também uma forma de impedir que a chama de humanidade que ainda brilha dentro de cada um de nós, nunca se apague. 
É só por isto a petição que nos pede um novo olhar sobre o trabalho precário. E ele há em tantas formas e sobre tantos disfarces. 
Somos a base da pirâmide. A carne para canhão. A melhor definição para descartável. Mas somos também a força que leva o país em braços para que outros possam descansar nos seus andores dourados. 
E essa força não se coaduna com incertezas, inseguranças e vidas no fio da navalha.

Para assinar  a petição : Aqui

Sunday, 2 October 2016

A Vida Dá Muitas Vodkas



Bebi vodka. 
A bebida queimou-me por dentro e as lágrimas queimaram-me por fora. Jorraram impiedosamente pela minha face, incontroláveis. Há muito que não soluçava como uma criança pequena. Colapsei. Depois da louça partida, o chão da cozinha repleto de cacos, dou-me conta de ter mergulhado no escuro. 
Imagino que falo com Deus, mas as minhas palavras soam perdidas no silêncio do Criador. Quer lá ele saber! Sou apenas mais uma entre milhares, milhões de outros seres humanos que reclamam da vida. Ou que se perderam no labirinto da vida. Sei lá eu onde me encontrar. Às vezes sinto-me estéril. Olho-me ao espelho e aparece-me o reflexo de um Atlas de costas vergadas e pernas trementes, o mundo às costas. 
Volto à vodka. Aos cigarros e a qualquer porra que me anestesie. É nestas horas que tenho pena de não ter xanax, ou prozac, ou pelo menos, coragem. Entre o copo e a baforada, o riso de Deus a confundir-se com o tilintar do gelo no copo. Ri-se. De certo que me olha e acha mais cómicos que dramáticos os rios negros que me sulcam o rosto. “Nunca chores depois do rímel.” Diz-me o sacana. E volta a rir-se. 
Da estante cai-me o dossier onde guardo fotos de repórteres de guerra. 
Os calhandreiros da miséria humana. Disparam as objectivas sem salvar. Estendem a máquina em vez da mão. A melhor foto será sempre a que mais choca. Venha o impacto. 
E cai-me aos pés Aleppo. Tikrit. Islamabad. E caiem-me aos pés as imagens a preto e branco de meninos e de velhos que vivem na death line. No fio da navalha. Na hora de ponta. Ásia, Africa, Médio Oriente. 
Olho a criança sudanesa que valeu o pullitzer a Kevin Carter. O fotojornalista suicidou-se três meses após tirá-la. Talvez tivessem sobrevivido os dois se Carter em vez de disparar uma objectiva tivesse arredado aquela criança de pé da ave faminta, ainda assim, não tão faminta quanto a criança, de certo. Carter poderia ter optado por dar-lhe a vida em vez de lhe eternizar a morte. Se a tivesse alimentado. Se a tivesse roubado à fome e à miséria. Mas Carter preferiu o Pullitzer. 
Deus deve ter-se rido de Carter quando o viu a pôr termo à vida. Deve ter-se rido de Carter quando o viu a deambular a meio da noite, como um fantasma, pelos corredores da casa. Ter-se-á certamente, rido, o Senhor, com as suas comiserações. A depressão, furtou-lhe o sono e atirou-o noites seguidas para o sofá de pele, onde frequentemente acabava por entornar copos de whiskey velho. 
Terá Carter premido o gatilho, com o cano da arma encostada ao céu da boca? Ter-se-á assustado com a gargalhada frenética do Criador e num tremer de mão, disparado a bala que lhe vazou um olho e se alojou no cérebro? 
Carter e Deus saberão. Eles saberão. Apenas a criança sudanesa nunca saberá porque morreu. Nunca saberá porque Carter não a ajudou, preferindo tirar-lhe uma fotografia. Nunca saberá porque nasceu no Sudão e não em Portugal, onde agora poderia como eu, beber vodka para afogar a dor e fumar cigarros para a enganar o efeito tranquilizante da nicotina. 
A criança sudanesa, nunca saberá porque não teve ela também o direito de deixar que os seus olhos vertessem lágrimas pelas mesmas razões que os meus olhos vertem lágrimas. E como eu, num tapete macio, aos pés da cama, ou como Carter, sentado num confortável sofá. 
Bastou-me então isto. Ver além da minha dor. Ver a verdadeira dor. Parei de sentir a minha dor. 
O criador deixou Aleppo ,onde chora diariamente a sorte dos seus filhos. Deixou o Sudão, deixou Caracas, deixou Ankara, deixou Islamabad. Deixou todos estes infernos por alguns minutos, talvez por estar farto de chorar a sorte das suas gentes e veio aqui, à minha rua, a minha casa, rir-se de mim e rir-se comigo. Atira-me as fotos de quem, ao contrário de mim, não tem, nunca teve e provavelmente nunca terá vodka para lhe amenizar a dor e por certo, não encontraria nunca nas minhas razões, motivo algum para verter lágrimas. 
Tomada esta consciência, volto a chorar, já não por mim, mas pelo menino sudanês e por todas as pessoas deste mundo cujo único mal que fizeram foi nascer no lugar errado, sempre vítimas da ilimitada maldade humana. E por Deus. Choro por tê-lo distraído da sua missão de ajudar quem realmente precisa. Espero que não volte a perder tempo comigo. Diz-se que o Senhor é omnipresente, mas eu desconfio que não é bem assim e quer o Sudão quer Aleppo… ainda ficam um bocadinho longe.

AK in Mar de Deus

Saturday, 1 October 2016

As Borboletas de Aleppo



Foto- Ryad Alhussen 


Eu não sei se o Trump manterá a sua palavra em relação ao Médio Oriente.Por ora, ele diz que isto tem que acabar e apenas por isto, quero que ele ganhe. A senhora Clinton, pelo contrário, já fez saber que o seu programa levará ainda mais morte ao Levante.
É preciso parar! Que ninguém se engane acreditando que o sofrimento de uns não será o sofrimento de outros. 

**O bater de asas de uma borboleta em Tóquio pode provocar um furacão em Nova Iorque.

O Livro de Jade do Céu

"A chuva acaba de fazer um intervalo e o sol espreita timidamente por detrás das nuvens. O cheiro da terra molhada é intenso e convidativo. Um dos aromas da natureza que mais amo. Faz-me lembrar dos primeiros dias de outono, a época sazonal de que mais gosto. Uma época de quietude e introspeção. Uma época de balanço, como aquela que invade os velhos em fim de vida. No outono reflete-se sobre tudo e sobre nada. Sobre as atitudes e as escolhas, sobre o passado e o presente. O outono é a época do ano em que parecem nascer todos os porquês do mundo e o futuro, ainda que mudo e invisível reveste-se de um manancial imenso de possibilidades.
É disso que gosto no outono. Na estação das primeiras chuvas e das folhas mortas levadas pelo vento, tudo é possível. A morte e o renascimento ligam-se ferozmente num enlaçar de mãos profícuo. "


(In O Livro de Jade do Céu")