Monday, 18 April 2016

Os restos do mundo

É preciso alguém que nos acompanhe para que não fiquemos sozinhos com o resto do mundo. Porque é no que o mundo se tornou: Restos.
Restos de paz, restos de amor, restos de sonhos e de bondade. É por isso que já ninguém quer este mundo. Ninguém gosta de restos. Secretamente sonhamos com os apocalipses. Os bíblicos e os cinematográficos. O Day After que há-de vir carregado de novas possibilidades. Um Armagedom promissor, um desvio de rota que nos leve a bater de frente com um pedregulho espacial ou que nos conduza à entrada abrupta num buraco negro, de minhoca talvez, uma dobra no universo que nos catapulte para os novos amanhãs tão diferentes de hoje. Secretamente desejamos o fim. Invejamos o jurássico e as eras glaciares. A hecatombe há-de salvar-nos de nós mesmos, qual arca a proteger-nos do dilúvio. A morte há-de salvar-nos da vida.Secretamente desejamos o fim. É a possibilidade do Fim que nos fascina nas profecias. Incumpridas. Em vez do alívio trazem-nos a frustração do erro. Escarnecemos do Nostradamus porque não soube fazer as contas e ridicularizamos os Maias porque ignoraram a vida para além de 2012. O fim é o nosso ponteiro predilecto no Doomsday Clock e o hieróglifo incógnito nas paredes de Gizé. Ninguém o diz em voz alta para que outros não pensem que nos tornámos suicidas. Mas tornámos. Continuamos a trabalhar, a comer, a fornicar e a procriar para nos mantermos ocupados e não explodirmos de impaciência por vermos o fim ainda tão longe. Nos intervalos compramos o bilhete para a melhor fila do cinema e comemos pipocas com o ruído do entusiasmo a trespassar-nos os tímpanos para calarmos o horror que sai da tela. É o fim. É a nossa guerra dos mundos, dos nossos mundos interiores que nos faz agradecer a Cameron pela vinda do exterminador. E é também a guerra dos nossos mundos interiores que nos obriga a recear a madrugada dos mortos. O nosso instinto de sobrevivência acaba sempre por falar mais alto que a morbidez impetuosa que nos corre nas veias. A morte salva-nos da vida. Cormac McCarthy tem razão. Estamos na estrada. A nossa existência é uma estrada. Onde ela nos levará depende muito de quem somos. De que matéria somos feitos. Se na estrada, a objectiva que nos retracta captar ainda um resto de felicidade tola, somos a esperança. Se esse resto não nos bastar, somos renúncia. Haja por isso quem nos acompanhe para não ficarmos a sós com o resto do mundo. O resto do mundo é um abismo. É preciso alguém que nos agarre para não cairmos no abismo.


Saturday, 16 April 2016

De livro em livro

Sempre dei livros aos meus filhos. Cedo, muito cedo, vários volumes de livros infantis, contos, Os Irmãos Grimm, Christian Andersen, Disney… Depois os juvenis; a História de Portugal; ciência, Civilizações Antigas; As Grandes Construções do Homem; mistérios e lendas; muita banda desenhada, Tintin, Asterix, Corto Maltese (o Rafael ficou fã), o maravilhoso conto de Marguerite Yourcenar : A Fuga de Wong-Fô, (ainda hoje choro quando o leio). Enfim, paredes e mais paredes forradas de livros e hoje posso dizer que só não os tenho na casa de banho. Por gosto e necessidade lá fomos coleccionando histórias de todos os tamanhos e para todos os gostos. Por necessidade, confesso: Eça, Camões, Camilo. Por gosto, Pessoa, Virgílio, Saramago, Lobo Antunes, Natália Correia, Florbela Espanca. Saltamos de livro em livro, de história em história como quem salta pocinhas e procura mergulhar nas profundezas do saber. Cá em casa lê-se de tudo e cresce-se com o que se lê. Aprendemos, sonhamos, emocionamo-nos, choramos e rimos.
Há 10 anos, o meu filho tinha apenas 11 e já sabia que nem toda a gente tem a sorte de acordar com o chilrear dos passarinhos ou com as buzinadelas dos carros que descem a avenida e se dirigem ao centro da cidade. Aos 11 anos ele já sabia que existem mulheres escondidas nas burkas, escondidas nas esquinas cinzeladas, por baixo dos néons em pedaços, mulheres que acordam todos os dias com o barulho ensurdecedor de bombas a rasgar o céu, o estrondo aterrorizador de edifícios que em menos de nada se transformam em escombros, rajadas de metralhadoras a substituir o bulício das ruas, gritos desesperados de pais que seguram os filhos mortos nos braços. Aos 11 anos o meu menino já sabia que nem todas as mulheres, nem todos os homens, nem todas as crianças deste mundo dormem à noite, imitando-o na sua cama quente e confortável. Ensinei-lhe que para muitos, as noites dão mais medo que sono, e que o medo nos pode transformar em zombies tacteando no escuro um remédio que nos cure as dores do corpo e da alma. Ensinei-lhe que enquanto dormimos, comemos, passeamos e amamos, há pessoas no mundo que caminham pelo deserto em que se transformaram cidades inteiras e não têm tempo para dormir, o que comer ou quem amar e que nas noites em que são zombies contemplam retalhos de rios onde corre mais sangue que água. Aos 11 anos o meu pequeno filho já sabia que havia uma África e um Médio Oriente dilacerados pelas guerras que aparecem nos intervalos dos mercados, “lembra-te filho, as guerras aparecem sempre nos intervalos dos mercados, nos intervalos das compras e das vendas, nos intervalos da acumulação de coisas que não valem as vidas que se acabam. Lembra-te: No Médio Oriente um bom ditador é o garante da estabilidade. “Sem um bom ditador, todo o Médio Oriente é um matadouro, filho. Religião, petróleo, armas, todos os pretextos são bons para fazer jorrar sangue”. Às vezes, onde há muitos sádicos é preciso haver um sádico ainda maior que encerre os outros em arame farpado.
Defendo-o ainda hoje: Sadam era o macho Alpha de uma matilha perigosa e sanguinária. E sobre isto, sobre tudo isto se pode aprender nos livros, e que felizes, afortunados que nós somos por não ser a vida a ensinar-nos. “Os vendilhões nunca se foram embora do templo, filho. Repara como apenas nisto concordaram Alá, Jeová e Cristo: Crescei e multiplicai-vos.” Para grande azar dos cristãos e até mesmo dos judeus, os muçulmanos são os únicos que seguem a advertência divina à risca. Há 10 anos, quando os meus filhos me perguntavam para onde iam as pessoas mortas, eu podia dizer-lhes que elas iam para dentro da estória de Wong Fô e que uma vez aconchegadinhas nas páginas, podiam finalmente dormir no interior de uma das suas telas. Porque nas telas de Wong Fô a beleza é tão intensa, que nada no mundo se lhes compara e só uma beleza assim é capaz de compensar uma vida inteira de sofrimento e de noites sem dormir. Podia, mas preferi sempre confrontá-los com a verdade. Os livros, por mais mágicos que sejam, revelam apenas a grande vontade do autor em embelezar este mundo. Não que o mundo não seja belo o quanto baste. Nós é que se calhar precisamos de extrair da leitura uma nova forma de o olharmos.


O Mundo é um lugar estranho...

Este mundo é um lugar estranho. As redes sociais são lugares estranhos. O Facebook é um lugar estranho. Aqui vomitam-se opiniões sobre tudo e mais qualquer coisa, dizendo e desdizendo logo de seguida o que se disse antes, só para não se perder o comboio da opinião. E é pelos dizeres e desdizeres que leio, que a minha cara de espanto é cada vez mais a que uso neste mundo estranho das opiniões em série. Às vezes, são os posts de quem defende a comunidade homossexual, o “livre trânsito” para quem levaria a humanidade à extinção se dos homossexuais dependesse a continuidade da espécie. Mas o que choca mesmo é que minutos depois o autor de tal post publique outro em que opina favoravelmente à integração das comunidades muçulmanas em Portugal, na Europa, no Ocidente. (Atenção que eu não disse árabes. Disse muçulmanos. E entre uma coisa e outra vai uma diferença igual há que existe entre portugueses e cristãos.)
Saberão estas pessoas que as comunidades muçulmanas abominam homossexuais e que vários braços do Islão lhes reservam a decapitação?
As mesmas pessoas que defendem a entrada de muçulmanos na Europa são inúmeras vezes também feministas em grau superlativo absoluto e publicam regularmente verdadeiros hinos às conquistas das mulheres, exibindo os seus troféus como marcas inequívocas dos progressos femininos. E também, minutos depois voltam ao tema “refugiados”, coitadinhos, temos de os deixar entrar, ficar, e trata-los com muito amor e carinho.
Saberão estas pessoas que grande parte dos braços do Islão nega os mais básicos e elementares direitos às mulheres?
Estas pessoas, sempre com uma grande fome de amor pelo próximo, também exibem fotos com o seu cão, o melhor amigo, e partilham amiúde imagens de maus tratos a animais, condenando-os veementemente. E mais uma vez, 5 minutos depois apelam à entrada das comunidades islâmicas dizendo que quem se insurge contra é desumano, é xenófobo e racista, como se ser muçulmano fosse uma questão de raça e não de religião.
Saberão essas pessoas, que a maioria dos muçulmanos considera imundo, impuro e passível de punição quem se atreva a ter um animal de estimação em casa?
Dizem os autores de tais posts que são a favor do Amor entre toda a humanidade, o amor entre géneros, o amor entre espécies, o amor entre bactérias e moléculas, o amor entre os átomos. São pois estas pessoas absolutamente e mais do que absolutamente, usando o superlativo absoluto da coisa , acérrimos defensores do Amor. E dizem ainda estas pessoas acérrimas defensoras do Amor, que a felicidade de cada um deve sobrepor-se à do colectivo. Que são um direito irrefutável, as liberdades individuais. (Quando são partidários de esquerda a dizer isto, então a estranheza sobe para níveis nunca vistos! Parto-me a rir!) E em nome desse amor aceitam, querem, desejam e vergam-se perante quem não partilha desses mesmos ideais de amor ao próximo e pelo contrário, rege-se por valores, que estão a anos luz deles.
Eu não quero acreditar que o Amor ainda vai ser o grande culpado pela maior tragédia humana que se pôs ao caminho, mas parece-me que este Amor assim tão desenfreado, pode mesmo atirar com a espécie dominante no planeta para um precipício do qual muito dificilmente sairá. Aqui, como em muitas outras coisas o segredo é o Equilíbrio. Nem este desmesurado sentido de liberdade individual, nem o oposto que caracteriza as comunidades islâmicas, onde o que separa o respeito, pelas regras da morte é apenas uma fina página do Al-Corão.
É pois, muito perigoso este convite a “Cada um ser feliz conforme lhe aprouver”, e é preciso olhar com olhos de “ver” para esta frase, e não só porque ela significa a felicidade à vontade do freguês. Não só porque ela significa que se eu for feliz a envolver-me sentimentalmente ou sexualmente com alguém do mesmo sexo devo fazê-lo, mas porque essa frase também significa que da mesma maneira é legítimo que eu me envolva sexualmente com animais ou com cadáveres ou praticando o incesto, ou pedofilia, ou roubando e matando quem se atravessar no meu caminho, se isso me fizer feliz. E eu tenho todo o direito a ser feliz. Logo posso fazer tudo o que me dá na real gana porque o que interessa aqui é defender o hedonismo particular, ignorando que vivemos em sociedade e que viver em sociedade não é compatível com hedonismos individuais. Nem sequer é compatível com o tal Amor Universal. Eu não posso realmente amar o outro se me estou nas tintas para o seu bem-estar face às minhas atitudes.
Por isso, que se fodam os defensores de toda a merda e coisa nenhuma. Não defendem nada! Querem defender tanta coisa, sobretudo tudo o que lhes pareça o “politicamente correcto” , que nem percebem que o que defendem de um lado, logo a seguir condenam de outro. Mandam às urtigas o que defenderam antes. Devia partir-me a rir, mas isto é grave demais para rir!
De facto acho que este mundo tem tendência a ser um lugar menos estranho se implicar regras. E por isso, acredito que as liberdades individuais têm que ter balizas em sociedade. Se não as tiver, se efectivamente cada um puder ser feliz conforme entender, fazendo o que mais lhe dá prazer sem olhar ao choque que as suas acções podem provocar no outro, instala-se o caos e a prática de todas as monstruosidades que referi em cima e muitas outras que não referi, serão um lugar-comum. Não tenho dúvidas. A verdade é que a maioria dos homens não faz o bem porque é bom, mas porque tem medo das consequências se fizer o mal. E é por isto também que as religiões têm tanto poder sobre nós. Porque nos ensinam que há castigo, que há punição se sairmos dos trilhos do bem. Sem estas balizas, seríamos todos nós, bichos. Precisamos das noções de ética e moral sempre acompanhadas de uma recompensa e de um castigo. Lamento, mas ainda não evoluímos assim tanto para dispensarmos isto. E se nós não evoluímos, imagine-se o que para ali vai de evolução quando se fala de muçulmanos. A extensa maioria, para não dizer totalidade, vive ainda tempos medievais. Não saíram de lá.
Mesmo os que vivem na Europa não saíram de lá! Veja-se Inglaterra, França, Bélgica, Suécia, Alemanha… Mas em vez da firmeza para lidar com estas pessoas, usamos a cedência. Cedemos. Ora são as carruagens só para mulheres, evitando os contactos entre elas e homens muçulmanos na Alemanha, ora são os hijabs nas cabeças das tripulantes da Air France, as tradições seculares na Suíça, a carne de porco retirada das escolas no Canadá…e muitas, muitas outras cedências, alterando assim o modo de vida do anfitrião para que o convidado se sinta em casa. Então a minha pergunta para os defensores de toda a merda e de coisa nenhuma é: Acreditam mesmo que rabos virados para Meca são compatíveis com liberdades individuais e Amor desmedido por todas as criaturas?



Foto: Muçulmanos em oração numa rua de Londres.



Apoteose

Dizem que o tempo apaga tudo, mas não é verdade: pessoas apagam pessoas. Pelos textos, personagens, reais em tantas memórias, misturam-se, sobrepõem-se, aglutinam-se numa orgia de palavras densas. O Amor em camadas geológicas, frases e gestos mortos e enterrados, relembrados pela força anímica das palavras, mesmo que desadequadas, repetidas e de gosto duvidoso. Relatos de ti na órbita elíptica da minha existência, ora em apogeu ora em perigeu, aumentando e diminuindo a distância, uma translação inquieta que nos cansou e impulsionou para o vazio. Um espaço aberto que nos alberga no escuro, em apoteose infinita. Fazemos silêncio e é por isso que escrevo. Há a vibração do som que sempre cria novas realidades e nós existimos agora, num agora que o tempo deixou nas traseiras do momento presente. A porta fechou-se. Sim,já antes se havia fechado e reabriu, voltámos à luz, mas os olhos não puderam suportá-la e ela perdeu o sentido. Reencontro-o aqui. Nas palavras…nas frases que se lançam a mim como feras prontas a consumir qualquer coisa tua que ainda persista no meu campo áurico. Tudo o que resta hoje, por força de muitas circunstâncias, vai pairando aqui… constelação de letras errantes no imenso espaço que de nós se esvaziou. Sou uma pessoa diferente. Sei mais sobre o Amor e também sobre a falta dele. “Quero escrever-te até encontrar onde segregas tanto sentimento”, dizia Adélia Prado. Continuarei a escrever até que o tempo se me acabe e o espaço se retraia à partícula do átomo. É aí que tudo começa.


Amar...