É preciso alguém que nos acompanhe para que não fiquemos sozinhos com o resto do mundo. Porque é no que o mundo se tornou: Restos.
Restos de paz, restos de amor, restos de sonhos e de bondade. É por isso que já ninguém quer este mundo. Ninguém gosta de restos. Secretamente sonhamos com os apocalipses. Os bíblicos e os cinematográficos. O Day After que há-de vir carregado de novas possibilidades. Um Armagedom promissor, um desvio de rota que nos leve a bater de frente com um pedregulho espacial ou que nos conduza à entrada abrupta num buraco negro, de minhoca talvez, uma dobra no universo que nos catapulte para os novos amanhãs tão diferentes de hoje. Secretamente desejamos o fim. Invejamos o jurássico e as eras glaciares. A hecatombe há-de salvar-nos de nós mesmos, qual arca a proteger-nos do dilúvio. A morte há-de salvar-nos da vida.Secretamente desejamos o fim. É a possibilidade do Fim que nos fascina nas profecias. Incumpridas. Em vez do alívio trazem-nos a frustração do erro. Escarnecemos do Nostradamus porque não soube fazer as contas e ridicularizamos os Maias porque ignoraram a vida para além de 2012. O fim é o nosso ponteiro predilecto no Doomsday Clock e o hieróglifo incógnito nas paredes de Gizé. Ninguém o diz em voz alta para que outros não pensem que nos tornámos suicidas. Mas tornámos. Continuamos a trabalhar, a comer, a fornicar e a procriar para nos mantermos ocupados e não explodirmos de impaciência por vermos o fim ainda tão longe. Nos intervalos compramos o bilhete para a melhor fila do cinema e comemos pipocas com o ruído do entusiasmo a trespassar-nos os tímpanos para calarmos o horror que sai da tela. É o fim. É a nossa guerra dos mundos, dos nossos mundos interiores que nos faz agradecer a Cameron pela vinda do exterminador. E é também a guerra dos nossos mundos interiores que nos obriga a recear a madrugada dos mortos. O nosso instinto de sobrevivência acaba sempre por falar mais alto que a morbidez impetuosa que nos corre nas veias. A morte salva-nos da vida. Cormac McCarthy tem razão. Estamos na estrada. A nossa existência é uma estrada. Onde ela nos levará depende muito de quem somos. De que matéria somos feitos. Se na estrada, a objectiva que nos retracta captar ainda um resto de felicidade tola, somos a esperança. Se esse resto não nos bastar, somos renúncia. Haja por isso quem nos acompanhe para não ficarmos a sós com o resto do mundo. O resto do mundo é um abismo. É preciso alguém que nos agarre para não cairmos no abismo.