Já li artigos excelentes sobre as eleições americanas. A maioria, claro, mostrando perplexidade e temor pelo futuro que se adivinha impróprio para consumo independentemente de quem preside a uma das maiores potências do mundo.
O Trump não é nenhum santo e aliás, foi algumas vezes, irritantemente estúpido, chegando a revelar aquilo a que eu poderei chamar de alguma ingenuidade politica, o que até faz algum sentido, tendo em conta que o homem não vem da escola patrocinada pela Goldman Sachs, empresas petrolíferas ou as sinistras famílias detentoras da banca. Trump vem dos negócios. Por muitos considerado péssimo gestor, e aqui, dizem, com um historial duvidoso e pouco confiável. Aliás, não há realmente muito o que possa considerar de confiável em Trump, a não ser talvez, o facto de ele não ter saído de nenhum dos pântanos onde se habituaram a nadar todos os seus antecessores (o que é, a meu ver, bastante).
É por isso, nesta escala, genuíno. Tão genuíno que por diversas vezes abriu a boca para dizer o que muitos pensam mas não dizem.
Na verdade os problemas de Trump não foram os comentários racistas ou xenófobos nem mesmo os misóginos. Desconfio até de que não houve propriamente um sentido jingoísta na sua acepção extremada, nem tão pouco sinais de misoginia (afinal, o mal de Trump parece-me ser precisamente o contrário. Ele gosta de mulheres e gosta muito.) O problema de Trump é ou foi, o de não medir o que diz. O problema de Trump foi ter-se esquecido de que um discurso bonito e politicamente correcto cai (quase sempre) irreflectidamente nas graças dos falsos puritanos e donzelas facilmente impressionáveis. Os discursos politicamente correctos têm sempre o condão de deslizarem correntemente pelos ouvidos adentro dos pregadores dos evangelhos, das igualdades e fraternidades, dos brandos e bons costumes, e todavia, são estes mesmos pregadores críticos de Trump que, para além de pregar, não mexem uma palha para colocarem em prática o que lhes sai na oratória. Importa no entanto, dizer que no que ao nonsense diz respeito, em Trump não há nada de novo. Veja-se Berlusconi ou Sarkozy, as escandaleiras, os discursos inflamados e nacionalistas (Órban, Boris, Farage), ou não venhamos a ter num futuro muito próximo com Marine Le Pen, que é cada vez mais, absolutamente elegível. E note-se que se estas figuras, estes arautos das mudanças radicais imergem, fazem-no respondendo à vontade inequívoca dos povos de romper com um sistema caduco, moribundo, cujo crédito é zero e o desgaste palpável. Já ninguém quer isto. Amargou.
Trump foi insolente durante toda a campanha e chegou a parecer um rapazola deslumbrado com a possibilidade de assentar arraiais na Casa Branca, é um facto. Ainda não sei se confio na sua retórica altruísta para o bem do povo americano. Todavia, confesso, mais do que a vitória de Trump, satisfaz-me a derrota de Hillary.
Também é um facto que Trump é podre de rico. Não depende, ou pelo menos não dependeu até aqui dos tubarões da finança. E é por isto legítimo que subsista a dúvida: terá corrido à presidência para afagar o ego? Terá sido tudo por vaidade? Ou há mesmo uma vontade de esmurrar os poderes instalados? Quero acreditar que é esta última hipótese o motivo da noite de ontem. E se assim for, apenas por isso, já valeu a pena a vitória dele.
O escritor Richard Zimler diz que Trump tirou a tampa da Caixa de Pandora "e toda aquela gente super conservadora, racista, misógina, homofóbica começou a pensar :‘já podemos falar em voz alta que não gostamos dos mexicanos, já podemos falar em voz alta que não gostamos dos judeus."
Quanta parvoíce diz o Sr. Zimler! Afinal em que raio de mundo queremos viver? Num mundo onde as pessoas não digam em voz alta que não gostam de mexicanos, judeus, muçulmanos, etc, ou num mundo, onde sejamos realmente capazes de gostar dos diferentes e aceitar as diferenças? Se Trump abriu alguma Caixa de Pandora, foi para precisamente escancarar a enormíssima mentira em que vivemos há várias décadas, desde que o multiculturalismo passou a ser moda, sem que nunca nos tivéssemos preocupado primeiro em aprender a olhar para o outro como queremos que o outro olhe para nós.
Não sejamos ingénuos. Para que se verifique alguma mudança, vamos precisar inevitavelmente de rebentar com o que está estabelecido. Eu não gosto do que está estabelecido. Temos um mundo péssimo, sem valores morais e éticos, rendido ao consumo, inebriado com a falsa aura de aceitação das diferenças, do multiculturalismo (tudo tretas), esmagados pela imigração em massa que só trouxe desequilíbrios. Estamos e assim continuaremos até que mais Trumps apareçam, asfixiados pelas consequências nefastas da globalização.
A economia mundial não assenta, como seria o ideal, na prosperidade, mas sim na miséria dos povos. Assim não podemos continuar. Há que repensar e refazer (sem pés de barro) esse caminho da igualdade e da fraternidade entre os povos. Trump faz bem em querer derrubar esses mitos nos quais acreditamos hoje. Tudo isto é mentira e os americanos que votaram em Trump, perceberam-no. E se o perceberam, não é porque são mais burros, mais incultos, mais analfabetos, do que os que com maior preparação académica, mais viajados e mais jovens votaram em Hillary. Perceberam-no porque sentem na pele, todos os dias, as dificuldades da sua própria sobrevivência. Só espero que o recém-chegado à Casa Branca esteja à altura de abrir novos caminhos. Serão difíceis de trilhar? Serão. Desengane-se já quem pensa que é possível reconstruir sem destruir primeiro.