São 6 e meia da manhã. Ainda não dormi. Na rua chove copiosamente e a casa está fria. É Dezembro. Quase Natal. Adiei por mais um dia a compra de meia dúzia de presentes, mas deambulei pelo centro comercial da cidade. Observei a azáfama das lojas cheias de clientes, as mãos ansiosas a passarem cartões de crédito nas caixas, a carregarem sacos, embrulhos, roupas, perfumes, telemóveis.
À mesma hora em que um rapaz encorpado, esculpido por muitas horas de ginásio, passava por mim com um LCD debaixo do braço, rebentava mais uma bomba em Aleppo. À mesma hora em que uma mãe indicava ao empregado da loja que queria um embrulho bonito para o novo iphone da filha adolescente, mais uma dezena de miúdos na Somália sucumbia à desidratação, desnutrição e falta de vacinas. À mesma hora em que um grupo de raparigas exibia orgulhosamente os vestidos para a festa de fim de ano, acabados de comprar na Stradivários, o Washington Times comunicava ao mundo que na Holanda, a eutanásia é oferecida como cura para o alcoolismo. À mesma hora em que me sento para me deliciar com um calzone carregado de queijo derretido e pepperoni, também leio no feed do Facebook que na Síria, mães e pais preferiram matar as suas próprias filhas para evitar que elas fossem vítimas de estupro por membros do Daesh.
É Natal. Eu estava a ouvir cânticos, observava as luzes multicolores, os brilhos das decorações natalícias e metia na boca mais uma garfada do meu calzone. Mas a notícia das meninas sírias assassinadas pelos próprios pais, tirou-me o apetite e o encantamento e colocou-me à frente a minha filha, a minha linda Mariana, e transportou-nos às duas para o meio das ruínas de Aleppo. E aos meus olhos, a minha menina, tornou-se vítima da má sorte por ter nascido em tão horrível lugar onde é preciso matar para não morrer, onde é preciso morrer para não sofrer a humilhação e a desonra. São quase 5 da manhã. A esta hora em Aleppo, como em tantos outros lugares do mundo, há quem passe indiferente ao nosso natal, noites inteiras ao relento, à chuva, na melhor das hipóteses ao abrigo de meias paredes, recantos que oferecem um tecto e um bocado de chão onde estender um velho cobertor. A esta hora, as mães de Aleppo acolhem os seus filhos nos braços, colocam-lhes as mãos sobre as cabeças, protegem-lhes os ouvidos do barulho ensurdecedor das bombas. As mães que não pregam olho, passam a noite a olhar os céus, atentas aos clarões dos bombardeiros, embaladas pelo ronronar dos estômagos vazios, os seus e os dos seus filhos. Pés calçados, prontos a caminhar rapidamente na direcção de outro refúgio se é o perigo que pressentem sobre as suas cabeças. É natal. E em França, onde também há natal, é ofensivo mostrar o dom supremo que é a Vida. Envergonham-se as mulheres que recusam fazer parte da eugenia e retira-se-lhes a bravura com que aceitam os seus filhos “diferentes” nos braços. Eu poderia continuar a escrever sobre todas as calamidades deste mundo, sobre todos os horrores que precisamente a esta hora estão a acontecer, atirando para o mais desumano desespero, milhares, milhões de pessoas em todo o mundo e quando acabasse, já seria natal outra vez, mas do próximo ano. Mas é natal e no natal o tempo é o de pensar na ceia, no bacalhau e nas rabanadas, nas luzes e nos enfeites, nos presentes e no orçamento que é preciso esticar para os comprar. Tanto apêndice para um natal que é apenas o aniversário de Jesus, o Homem que ensinou o Amor, a fé, a solidariedade, a simplicidade e o respeito pelo outro. O mundo está a abrir-se debaixo dos nossos pés e nós, ainda que nos sintamos no pedestal, estamos também a cair para o abismo, tal como as raparigas que os pais matam na Síria para não serem violadas pelos mercenários do ISIS, tal como os miúdos da Somália que morrem a revirar os olhos em busca de um pouco de pão…tal como…o tipo que está aí em baixo, a enrolar-se num pedaço de cartão à porta do vosso prédio. E vocês ainda acham que é natal? Não me FODAM! ISTO NÃO É NATAL! Isto não é Natal.