Um dia escreverei sobre cada uma delas. Sobre cada momento que tornas especial, entre o acordar e o regresso a casa, e tudo o que está de permeio, os teus olhinhos meigos a transbordar ternura e a alegria incontida com que me recebes quando abro a porta ao anoitecer ou me dás os bons dias.
Pergunto-me se saberão, aqueles que seriam capazes de te abandonar em qualquer esquina, em qualquer pedaço de alcatrão, de quanto amor és capaz de sentir por quem não é sequer da tua espécie. Pergunto-me se alguma vez viram em olhos como os teus, a alma que também é como a deles parte do mesmo Criador e por essa razão, em algum momento das suas vidas lhes sentiram a ligação, a conexão divina. Se como eu, alguma vez tiveram a sorte de se sentirem enredados, envolvidos em nós de marinheiro com outros como tu. Que latem como tu, que como tu correm pela casa atrás de uma bola, pulam de contentamento de cada vez que vão à rua,se deliciam com patés fedorentos...Como tu que rebolas sobre os meus lençóis depois do banho e te aninhas aquecido pelo meu corpo, sobre a manta que puxo para nos cobrir aos dois.
Contemplei a tua alma no primeiro dia em que te vi. Brilhou nos teus olhinhos negros e conectou-me. Sentia-a dizer-me coisas que só o meu coração foi capaz de ouvir. Soube então que o teu lugar era comigo.
Pergunto-me se saberão, aqueles que seriam capazes de te abandonar em qualquer esquina, em qualquer caminho de floresta, o que é comunicar com uma alma que se faz ouvir no coração. Pergunto-me se saberão, aqueles que seriam capazes de te maltratar, de te amarrar a um poste, prender-te a um metro de corrente, de quanto amor és capaz de entregar, assim, a troco de quase nada, apenas de um pouco de atenção, uma festa na cabeça, um prato de comida, um cobertor para te aqueceres. Pergunto-me se, em meio de tanto descaso, alguma vez cogitaram, ainda que apenas um segundo, do quanto é bom e libertador, permitirem-se amar e ser amados por criaturas tão diferentes e tão iguais. Pergunto-me se alguma vez imaginaram, que partilhar contigo a toalha de praia, um pedacinho da bola de Berlim, um passeio pelo parque, ou o lugar favorito do sofá, poderia torná-los melhores humanos.
Nem todos sabem que Anjos como tu têm afinal essa missão, a missão de regar a semente do amor que se abriga no peito humano e que às vezes murcha, às vezes seca e tantas vezes morre. Creio que há cada vez mais quem saiba que és um anjo. E que os outros como tu também o são. E que se anjos como tu vivem vidas tão curtas, tal facto se deve a que somos muitos e além de sermos muitos, somos teimosos, e uma vida de cão não basta para ensinar a um homem a matemática do amor. Um cão já nasce a saber tudo sobre a soma dos afectos. O homem morre quase sempre sabendo apenas subtraí-los.