Bebi vodka.
A bebida queimou-me por dentro e as lágrimas queimaram-me por fora. Jorraram impiedosamente pela minha face, incontroláveis. Há muito que não soluçava como uma criança pequena. Colapsei. Depois da louça partida, o chão da cozinha repleto de cacos, dou-me conta de ter mergulhado no escuro.
Imagino que falo com Deus, mas as minhas palavras soam perdidas no silêncio do Criador. Quer lá ele saber! Sou apenas mais uma entre milhares, milhões de outros seres humanos que reclamam da vida. Ou que se perderam no labirinto da vida. Sei lá eu onde me encontrar. Às vezes sinto-me estéril. Olho-me ao espelho e aparece-me o reflexo de um Atlas de costas vergadas e pernas trementes, o mundo às costas.
Volto à vodka. Aos cigarros e a qualquer porra que me anestesie. É nestas horas que tenho pena de não ter xanax, ou prozac, ou pelo menos, coragem. Entre o copo e a baforada, o riso de Deus a confundir-se com o tilintar do gelo no copo. Ri-se. De certo que me olha e acha mais cómicos que dramáticos os rios negros que me sulcam o rosto. “Nunca chores depois do rímel.” Diz-me o sacana. E volta a rir-se.
Da estante cai-me o dossier onde guardo fotos de repórteres de guerra.
Os calhandreiros da miséria humana. Disparam as objectivas sem salvar. Estendem a máquina em vez da mão. A melhor foto será sempre a que mais choca. Venha o impacto.
E cai-me aos pés Aleppo. Tikrit. Islamabad. E caiem-me aos pés as imagens a preto e branco de meninos e de velhos que vivem na death line. No fio da navalha. Na hora de ponta. Ásia, Africa, Médio Oriente.
Olho a criança sudanesa que valeu o pullitzer a Kevin Carter. O fotojornalista suicidou-se três meses após tirá-la. Talvez tivessem sobrevivido os dois se Carter em vez de disparar uma objectiva tivesse arredado aquela criança de pé da ave faminta, ainda assim, não tão faminta quanto a criança, de certo. Carter poderia ter optado por dar-lhe a vida em vez de lhe eternizar a morte. Se a tivesse alimentado. Se a tivesse roubado à fome e à miséria. Mas Carter preferiu o Pullitzer.
Deus deve ter-se rido de Carter quando o viu a pôr termo à vida. Deve ter-se rido de Carter quando o viu a deambular a meio da noite, como um fantasma, pelos corredores da casa. Ter-se-á certamente, rido, o Senhor, com as suas comiserações. A depressão, furtou-lhe o sono e atirou-o noites seguidas para o sofá de pele, onde frequentemente acabava por entornar copos de whiskey velho.
Terá Carter premido o gatilho, com o cano da arma encostada ao céu da boca? Ter-se-á assustado com a gargalhada frenética do Criador e num tremer de mão, disparado a bala que lhe vazou um olho e se alojou no cérebro?
Carter e Deus saberão. Eles saberão. Apenas a criança sudanesa nunca saberá porque morreu. Nunca saberá porque Carter não a ajudou, preferindo tirar-lhe uma fotografia. Nunca saberá porque nasceu no Sudão e não em Portugal, onde agora poderia como eu, beber vodka para afogar a dor e fumar cigarros para a enganar o efeito tranquilizante da nicotina.
A criança sudanesa, nunca saberá porque não teve ela também o direito de deixar que os seus olhos vertessem lágrimas pelas mesmas razões que os meus olhos vertem lágrimas. E como eu, num tapete macio, aos pés da cama, ou como Carter, sentado num confortável sofá.
Bastou-me então isto. Ver além da minha dor. Ver a verdadeira dor. Parei de sentir a minha dor.
O criador deixou Aleppo ,onde chora diariamente a sorte dos seus filhos. Deixou o Sudão, deixou Caracas, deixou Ankara, deixou Islamabad. Deixou todos estes infernos por alguns minutos, talvez por estar farto de chorar a sorte das suas gentes e veio aqui, à minha rua, a minha casa, rir-se de mim e rir-se comigo. Atira-me as fotos de quem, ao contrário de mim, não tem, nunca teve e provavelmente nunca terá vodka para lhe amenizar a dor e por certo, não encontraria nunca nas minhas razões, motivo algum para verter lágrimas.
Tomada esta consciência, volto a chorar, já não por mim, mas pelo menino sudanês e por todas as pessoas deste mundo cujo único mal que fizeram foi nascer no lugar errado, sempre vítimas da ilimitada maldade humana. E por Deus. Choro por tê-lo distraído da sua missão de ajudar quem realmente precisa. Espero que não volte a perder tempo comigo. Diz-se que o Senhor é omnipresente, mas eu desconfio que não é bem assim e quer o Sudão quer Aleppo… ainda ficam um bocadinho longe.
AK in Mar de Deus